Daniel Senise

A Singularidade de uma Linguagem Pictórica

Caru Duprat 

Publicado em Daniel Senise – Coleção Folha Grandes Pintores Brasileiros, Folha de São Paulo e Itaú Cultural, São Paulo, 2013

As obras aqui selecionadas têm a intenção de contemplar a diversidade do processo do artista, que se caracteriza pela constante experimentação dos materiais expressivos e pela invenção de procedimentos pictóricos, dialogando com as técnicas clássicas e com as transgressões das vanguardas artísticas, na permanente renovação da linguagem da pintura através da história da arte. Nesse sentido, ele se alinha à produção mais geral da década de 1980, dando ênfase à materialidade das superfícies, aspecto fundamental de sua obra.

As pinturas iniciais, em tinta acrílica, revelam a influência das tendências neoexpressionistas, em evidência no cenário artístico internacional do período. Ao optar pelo uso da tinta a óleo, envolvido em uma série de acasos, o artista descobre a possibilidade de imprimir a imagem, em vez de pintá-la. O processo de impressão de camadas de tinta permitiu elaborar a materialidade da superfície da tela de forma diferenciada, abandonando a gestualidade da pincelada, que marcava boa parte da produção da época, e adotando novas atitudes no embate com a tinta, como os atos de escavar e desgastar.

Senise retoma então a tinta acrílica e intensifica o processo de impressão, sempre aberto às possibilidades que surgem na experimentação. A ideia do sudário fundamenta-­lhe o percurso todo e aparece, nesse momento, aliada à maneira como concebe a representação da imagem na pintura. A história da arte passa a ser constante referência para o desenvolvimento da linguagem do pintor.

Na década de 1990, a ideia do sudário se expande, com o uso de pregos oxidados que registram a imagem sem a intervenção do gesto do artista. Paralelamente a isso, ele continua com a impressão dos pisos de seu ateliê, agregando à tela impurezas do solo e resíduos de tinta que respingam ao longo do processo. As superfícies impressas passam a ser o corpo do trabalho de Senise. Ele cola, descola, recorta, cola novamente e desloca as superfícies, construindo espaços perspectivos vazios, relacionados, a um só tempo, ao seu ateliê, aos espaços das instituições artísticas e às pinturas renascentistas. O gesto criador é transferido para o processo de construção das obras. As experiências com a materialidade da pintura aliam-se ao tema principal do pintor: a imagem como representação de uma ausência.

Na constante renovação de seus procedimentos artísticos, Senise passa a reciclar materiais que permitem levar o trabalho para o espaço tridimensional, sem abandonar a bidimensionalidade inerente à pintura. Assim, realiza instalações que dialogam com o tempo e o espaço da arte.

SEM TÍTULO, 1984

225 x 185cm

Acrílica sobre tela

Acervo da Coleção Gilberto Chateaubriand

MAM-RJ

Os artistas dos anos 1980 interrogam a permanência da pintura na contemporaneidade. “A pintura morreu, proclamavam as vanguardas. Pois que seja, respondem estes artistas, vamos fazer pintura com seu cadáver”, dizia Catherine Millet. Numa reação aos anos 1960 e 1970, em que imperou o formalismo da arte minimalista e o intelectualismo da arte conceitual, o fazer artístico passa a enfatizar estilos pessoais diversos Nessa retomada, uma onda expressionista tomou conta do cenário artístico internacional e nacional, sobretudo na Alemanha, na Itália e nos Estados Unidos.

Senise optou pela expressividade da pintura, mas sobretudo pela imagem, ponto de conexão entre ele e a arte. É a partir da imagem que o artista investiga o mundo, usando a pintura e a história da arte como território dessa investigação.

Suas obras iniciais, já em grandes formatos, revelam a expressividade de formas volumosas, seres estranhos, híbridos, fragmentados, que ocupam todo o espaço da tela, comprimidos pelos limites das bordas, construídos com elementos da arquitetura e do mundo orgânico, aliando as ideias de construção e criação. A paleta reduzida a brancos, negros e cinzas com pontuações de vermelho, enfatiza a dramaticidade da pintura. Os altos contrastes criam volumes densos e pesados e, no caso deste quadro, colunas aladas prendem-se à terra e simultaneamente evocam o voo. Metáforas dos fundamentos e dos devaneios artísticos.

A expressividade da pincelada foi a tônica de vários artistas dessa época, que desejavam imprimir sua personalidade na pintura. Inicialmente, Senise tirou partido da gestualidade, mas logo intuiu que essa não era sua via expressiva. Esta obra foi uma das nove produções do artista apresentadas na “Grande Tela” da XVIII Bienal Internacional de São Paulo, em 1985.

SEM TÍTULO, 1986

230 x 190cm

Acrílica sobre tela

Coleção particular

Hélices de avião se agigantam querendo romper os limites da tela, perfuram o ar e vem na direção do espectador. No embate direto com as tintas, o artista cria imagens pintadas em alto contraste e com poderosa volumetria. Com uma paleta reduzida, opta pela tensão do branco e do preto, vermelhos sangrados e azuis que dimensionam o espaço da tela para além do objeto.

Banais, provavelmente originários de referências de seu mundo pessoal, considerando que o pai era aviador, esses objetos “impõem-se como presenças monumentais mas vazias de qualquer conotação temática”, observa lvo Mesquita.

As referências do pintor nessa época vêm da arte internacional contemporânea e das escolhas que faz entre os movimentos de vanguarda. Interessa-se pela fragmentação de Pablo Picasso (1881-1973), pelos jogos dadaístas de Picabia (1879-1953) e Man Ray (1890­-1976), pelo Surrealismo de Max Ernst (1891-1976) e, mais recentemente, por neoexpressionistas como Baselitz (1938-) e Markus Lüpertz (1941­). Este último passou a ser uma referência importante desde 1983, quando Senise conheceu seu trabalho na Bienal Internacional de São Paulo.

Wilson Coutinho (1947-2003) refere-se à produção do pintor carioca como um “teatro das sensações mutiladas”, em confronto com uma situação limite da pintura. “Desta intimidade com os objetos, Senise tem construído, com suas formas volumosas, uma heróica sensação — uma monstruosa sensação física dos objetos. Senise tornou signos óbvios e corriqueiros um drama da sensação fragmentada, mutilada. (…) É a visão que se ocupa da cena, transformando o mundano, o corriqueiro, o que é negligenciável em ‘aIgo’ possuído pela inquietação das coisas. A arte de Senise é, nos anos 80, um acontecimento que parece contornar uma situação–limite da pintura: como continuar produzindo algo de inesperado, quando já não existe mais espera?”.

ELA QUE NÃO ESTÁ, 1988

247 x 212cm

Acrílica, betume e pigmentos sobre tela

Acervo do Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro)

No final da década de 1980, após a participação na Bienal Internacional de São Paulo, Senise começa a investigar a superfície da tela como o lugar do acontecimento da pintura. A relação entre figura e fundo passou a ser explorada na oposição da imagem com a superfície matérica, e a pincelada expressiva foi abandonada. “Aos poucos fui trocando essas marcas por outras que surgiam através de outros processos. Isso fez com que o imprevisível mudasse de lugar e o tempo da sua revelação começou a se espaçar”, diz Senise.

Ela que Não Está revela a qualidade de novos procedimentos e agrega um novo elemento – o prego —, que também transformou a maneira como o artista lida com a pintura. “Ela” não é uma imagem apropriada. Mas adaptada a partir de uma imagem fotográfica, em que uma mulher vestida de branco assume a posição envergada, sobreposta por um martelo delineado e por pregos, que surgiram a partir do filme A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese (1942-). Imagens associadas ganham uma densidade simbólica e discutem a ideia de representação na pintura.

Uma silhueta de mulher que simultaneamente revela e vela o corpo, ao sugerir que um véu a encobre, desfazendo-se na transparência dos brancos e integrando-se à superfície matérica da pintura, marcada por ocorrências pictóricas em camadas de tinta acumuladas — vermelhas, ocres e marrons —, cavadas, escavadas, raspadas, com sugestão de imagem de ossos guardando a memória dos tempos.

Materialidade e imaterialidade coexistem nesta pintura. Curiosamente, Senise inscreve na superfície a data de realização da obra. Estabelece, dessa maneira, a ponte permanente entre o presente e o passado, entre a presença e a ausência, falando da inerência desses elementos, quanto um está contido no outro.

Essa imagem fluida é fixada à superfície com pregos cravados, martelados, indicados pela presença da silhueta do martelo. Tais elementos ligados ao universo do trabalho revelam a ação do pintor e, simultaneamente, se apresentam como metáfora para os instrumentos da crucificação.

SEM TÍTULO, 1988

245 X 201cm

Acrílica, óleo e esmalte sobre tela

Coleção particular

É na exploração do meio pictórico que Senise encontra novas possibilidades para lidar com a imagem. A adoção da tinta a óleo, que seca mais lentamente, abre tempo e espaço para a elaboração da imagem e reflexão sobre ela. A energia investida anteriormente na pincelada é transferida para o embate com a matéria plástica e com a superfície da tela. Densas camadas de tinta sobrepostas, reagindo umas sobre as outras possibilitam ações como a escavação ou a raspagem. As imagens “parecem emergir de um fundo arcaico, da memória do tempo com alguma ressonância emocional e psíquica. Aquela primeira figuração, imposta à tela mediante o emprego de um desenho viril, é substituída por um jogo sutil e mais propriamente pictórico de insinuações ou alusões imagísticas. Em sua pintura Senise alude mais que descreve. Não revela, desvela, cria atmosferas e não cenários”, escreve Frederico Morais.

A relação da imagem com a superfície está mais imbricada. “Pego uma imagem que tem característica de fundo, e coloco-a na posição de figura”, diz Senise. Ele nos conta que o ponto de partida para esta pintura foi um pedaço de madeira, que Venosa, seu parceiro de ateliê, tinha jogado fora: “O refugo de Venosa passou a ser meu tema”. O que era insignificante para um, passa a ser significante para o outro. O que é figura passa a ser fundo, e o que é fundo passa a ser figura, rompendo com a hierarquia clássica dessa relação e provocando um “jogo de vai e vem” com o olhar do espectador.

“Verdadeiramente, seus fundos nunca se comportam como feitos secundários, como coadjuvantes da cena. Só se fazem pensar assim. São protagonistas como as figuras, dividem com a mesma intensidade as atenções”, observa Marco Silveira Mello. Muitas vezes a figuração surge justamente dessa articulação. É do jogo entre figura e fundo que a imagem se revela.

SEM TÍTULO, 1989

255 x 220cm

Esmalte sintético e acrílica sobre cretone

Acervo da Galeria OMR (Cidade do México)

Em uma tela de grandes dimensões, um único objeto, bem delineado, com a aparência metálica modelada pela luz e pela sombra, pende de uma superfície sombria, que remete a paredes descascadas pela ação do tempo.

Possíveis remissões habitam a mente do espectador, ambientam a cena e criam dimensões de escala. Diante da obra, Dawn Ades (1943-) se pergunta: “Mas o que é essa coisa? Sua escala, nesse quadro de grandes dimensões, sugere um sino, uma leitura aparentemente confirmada pela imagem. Juntamente com a superfície esfoliada e esburacada do resto do quadro, que parece se declarar como a parede malcuidada de um velho edifício, a atmosfera transmitida era a de um convento talvez na Itália, talvez na América católica da época colonial. O isolamento de um contorno similar a um sino em relação ao fundo fatidicamente escuro é como dobre de sinos em um mundo silencioso”.

Outras possíveis leituras podem advir dessa; a compreensão dos signos fica em aberto ao espectador, que promove suas próprias associações analógicas. A origem desse objeto é um bebedouro de patos flutuante que Senise encontrou jogado no jardim do pai. Novamente, algo que havia perdido a função, algo absolutamente banal é deslocado e incorporado à pintura, assumindo características transcendentes, capaz de transportar o imaginário de quem vê. Esse mesmo objeto foi fixado no centro de outra tela, Sem Título (1988), como o ponto nuclear de uma ciranda de peixes­aves que circulam nas águas e no ar. O objeto em si, esvaziado de seu sentido primeiro, assume dimensões metafísicas e se transforma em poesia. Nas palavras de Ades: “A aparência misteriosa desse objeto de metal deve ter atraído o artista tanto pela sua ambiguidade como por sua força sugestiva em um contexto pictórico”.

NA ESTRADA, 1991

195 x 145cm

Acrílica sobre cretone

Coleção particular

Com a sugestão do título, o espectador coloca-se “na estrada” à mercê do que pode vir a acontecer. A aparição desse gigantesco e estranho objeto que paira diante de nós sobre uma paisagem nos ameaça e desestabiliza, evocando algo sobrenatural ou do terceiro grau.

A paisagem traz elementos da presença do homem na natureza, uma vegetação esboçada e um poste de luz bem delineado, com os fios praticamente imperceptíveis. A fragilidade e a leveza dessas linhas se opõem ao peso e à densidade do objeto, que, gigantesco, “equilibra-se” sobre frágeis fios. Esse é o ponto de contato entre a paisagem e ele, entre o real e o surreal.

Esse volume geométrico, precisamente modelado, alcança uma dimensão onírica pela maneira como se apresenta: uma aparição. Ela irradia sua aura, impõe­se de forma desproporcional no espaço da paisagem, revelando a pequenez da dimensão humana.

Encontramos essa mesma figura com algumas variações em outras obras do artista.

Os elementos que transitam por diversas pinturas criam “famílias”, como diz Agnaldo Farias, e às vezes séries, que jogam com transposições de significados ou alterações de sentido.

Este estranho objeto, segundo Dawn Ades, pode adquirir outras leituras a partir de outras obras do mesmo ano, com O Beijo do Elo Perdido, Sem Título e Coy, de 1990, quando associamos a forma a uma “cabeça de pássaro”.

“Uma cabeça de pássaro similar, ainda que mais despojada e equívoca, aparece em Na Estrada e em Sem Título quase como um objeto purista, escolhido pela sua extrema similaridade com uma forma exclusivamente geométrica, mas esquivando-se a todo reducionismo deste tipo graças à sua especificidade onírica.”

O BEIJO DO ELO PERDIDO, 1991

139 X 203cm

Acrílica e óleo sobre cretone

Acervo do Banco Itaú S.A.

A evidência da imagem nesta pintura assume uma presença absoluta. “Eu acredito na pintura, melhor, na imagem, com toda convicção. Para mim o problema não é se há mentira ou não. Para mim a imagem é verdade indiscutível. Solar”, diz Senise. Ressaltando o que já foi dito, a imagem é o ponto de ligação do artista com a pintura, é o “motivo central”. Na perspectiva de Merleau­Ponty, toda obra tem um “motivo central”. Marilena Chauí (1941-) explica o ponto de vista do filósofo francês: “O motivo é o que vai surgir e, ao mesmo tempo, o que guia esse surgimento. Donde seu segundo sentido: o motivo como origem. Não como uma ‘causa’ passada, mas como inquietação que motiva a obra sustentando seu fazer-se no presente”.

O pensador italiano Luigi Pareyson (1918-91], por sua vez, fala do tema como o “motivo inspirador”, definindo-o como “o particular sentimento cantado pelo artista, ou um seu modo de ver e sentir um determinado argumento ou um complexo de determinadas ideias, emoções, aspirações”. A imagem como motivo, como tema, como inspiração que impulsiona o artista em busca de sua poética.

Nem sempre a imagem contém uma história que a precede e provoca sua aparição, mas o que importa, para além de seu sentido original, é a maneira como ela vai significando ao longo do processo artístico.

O título O Beijo do Elo Perdido complementa a imagem numa relação dialógica com a imagem da ossatura de duas cabeças de pássaros entrelaçadas em um beijo na eternidade, evocando simultaneamente a união e a separação. Duas formas cuidadosamente modeladas, que acusam sua densidade e realidade ao projetarem sombra na superfície. Configuram, assim, um espaço real, embora impregnadas de surrealismo.

“Os elos perdidos estão lá se beijando, foram ‘encontrados’ em um beijo que não acabou, não se consumou. É ancestral a nós e ao mesmo tempo posterior”, observa Senise.

As letras abaixo do objeto remetem ao registro de uma imagem arqueológica, na qual podemos identificar, espelhada como a imagem, a inscrição “ANGE”.

QUASE INFINITO, 1992

72 x 183cm

Óxido de ferro e esmalte sintético sobre tela

Coleção particular

Um novo elemento, o prego, foi determinante no processo de Senise, trazendo novas possibilidades de abordagem dos materiais expressivos e esclarecimentos em relação à ideia de representação. A princípio pintados como na obra Ela que Não Está, passam depois a ser depositados sobre a superfície para nela deixar marcas de ferrugem, a partir da reação com outros materiais.

Nas palavras do artista: “Com isso as marcas, os resíduos de ferrugem deixados pelos pregos eram simultaneamente objeto e imagem. Essa passagem foi importante para que eu tivesse mais claro como fazer para separar as coisas”.

Como observamos também na obra Retrato da Mãe do Artista e na série Bumerangue, o pintor associou as impressões de pregos ao sudário: “A ideia de sudário rondou o trabalho nesta época, o corpo é a própria pintura e vice-versa”, afirmou Senise.

Quase Infinito traz uma forma imediatamente associada ao símbolo universal do infinito, com o diferencial de que as linhas não se cruzam — surgindo daí a ideia de “quase” —, muito embora se trate de um movimento eterno, sem começo nem fim. A obra associa-se também a O Beijo do Elo Perdido, da qual é uma espécie de “diagrama”.

Temos aqui a finitude e a transitoriedade da condição humana subjugada à eternidade que consome a vida, relativiza e destrói nossas construções. “Reduzido a uma inaceitável condição de ínfimo ponto ruidoso no infinito oceano do intocável Tempo Absoluto”, observa José Emmanuel Espinho, “o homem organiza a sua vida na relatividade pobre de um único artifício: o calendário, os séculos, os dias do ano, o relógio – uma algema tonta a contar-lhe o lento escorrer do tempo, já perdido”.

RETRATO DA MÃE DO ARTISTA, 1992

202 x 207cm

Acrílica, óxido de ferro e esmalte sintético sobre tela

Coleção particular

Em Retrato da Mãe do Artista, Senise apropria­-se da história da arte, mais especificamente da obra homônima de James Whistler (1834-1903), realizada em 1871. A imagem impressionou o artista, pois Whistler “coloca a mãe em uma situação monumental; quase um emblema.

O retrato de perfil é uma coisa muito forte. Funcionou para o que eu queria fazer. Dá ideia de complementariedade através do tempo”, declarou Senise. Essa apropriação desdobrou-se em várias outras obras com uma variação surpreendente, jogando com o positivo e o negativo da silhueta, com a ideia de inerência entre a presença e a ausência.

Aqui, o pintor opta novamente pelo processo de oxidação do prego, que lhe permite subverter a ideia de representação apoiada na mimese — a imitação da realidade — e evocar a ideia do sudário como impressão de um corpo ausente, que lhe ronda o trabalho desde que colou e descolou a tela do chão de seu ateliê.

“A ideia do prego é uma sequência do ato de colar e descolar, é o princípio do sudário — um corpo deixando seu registro na superfície. No caso, o prego deixa um pedaço da sua própria forma (matéria). Coloquei a tela no chão, pintei com uma tinta bem impermeável que é o esmalte sintético. Joguei água com um pouquinho de sal e de cola, para a água ir para a superfície e a cola fixar o óxido de ferro na superfície. Fiz várias camadas.”

O binômio sudário­-memória ampliou a ideia de representação na pintura, continua Senise: “Sudário e memória não são dois temas, mas dois polos que estabelecem uma relação da pintura (plástica, portanto física) com uma questão humana (a memória). O sudário é o registro de um evento. A pintura como sudário é ao mesmo tempo a representação e o objeto”.

SEM TÍTULO, 1993

207 x 355cm

Pó de ferro e verniz poliuretânico sobre cretone

Coleção particular

Como já foi dito, Senise se apropriou de uma imagem de Whistler para produzir Retrato da Mãe do Artista e uma série de variações posteriores, dentre as quais este quadro sem título, no qual trabalha com um fragmento da silhueta ampliada da mãe.

A relação entre figura e fundo é invertida, instigando e desafiando nossa percepção: “Tento trabalhar com restos. Pego uma imagem que tem características de fundo e coloco-a na posição de figura”, diz Senise. Ao negativar a figura e simultaneamente positivar o fundo, emerge a clássica imagem de um vaso através de um jogo de Gestalt, que pode remeter ao Santo Graal — cálice sagrado na iconografia cristã, o Graal pertencia às lendas do rei Arthur, representando o cálice que devolveria a paz ao reino.

Tais metamorfoses da mesma imagem acumulam narrativas diversas, conforme entramos no jogo de alternâncias espaciais. Quando focamos em uma narrativa, a outra se ausenta e vice-versa.

Segundo Régis Debray (1940-), na perspectiva da história da arte, a gênese da imagem está associada à morte, à necessidade do homem de representar algo que está ausente. Evoca e substitui, preenche uma carência, alivia a dor. “Plínio, o Velho, relata que ‘o princípio da pintura constitui em traçar com linhas o contorno de uma sombra humana’. (…) Imagem é filha de saudade.” É “mediadora entre os vivos e mortos, os seres humanos e os deuses (…). Essa imagem não é um fim em si, mas um meio de adivinhação, defesa, enfeitiçamento, cura, iniciação”.

Senise acredita no poder dela como uma possibilidade mágica, de cura e de transformação.

“’ Magie’ e ‘image’ têm as mesmas letras (…) Neste sentido, a ‘magia da imagem’ poética sempre existiu’”, conclui Debray. Ancestrais, elas se retiram da história e abrem os portais da memória, para dialogar com o presente.

ELA QUE NÃO ESTÁ I, 1994

193 x 305cm

Acrílica, pó de ferro e laca sobre tela

Coleção particular

Esta obra integra uma série de cinco pinturas de grandes dimensões, que foram intituladas com o mesmo nome e diferenciadas pela numeração. A mesma imagem, que chama a atenção pela simetria, é repetida em quatro telas. Diferenciadas pela textura e pelo contraste da relação entre figura e fundo, elas permanecem suspensas no tempo e no espaço. A imagem foi retirada do afresco A Morte de São Francisco, pintado por Giotto na Capela Bardi da Igreja de Santa Croce, em Florença, e alterado pelo tempo. No século XVII, em função de uma epidemia, a capela foi caiada e erigiu-se uma tumba no local. Tempos depois, no século XIX, um processo de restauro revelou os afrescos, e a parte obstruída pela construção da tumba foi refeita. Entretanto, uma restauração posterior eliminou essa reconstituição, deixando somente o que fora pintado por Giotto.

Curiosamente, ocorre uma estranha sintonia entre as coisas que se dão no espaço e no tempo. A moldura da tumba colocada sobre a pintura envolve perfeitamente o corpo de São Francisco como se ele estivesse enterrado nela, criando uma sobreposição de sentidos à imagem que se deu através do tempo.

Senise apropriou-se exatamente da forma que “não está” mais na obra, significando a presença da ausência. Ao apropriar-se dela, o artista traz para o presente a memória de séculos, com histórias que discutem a autenticidade da imagem após o processo de restauro. Assim, o tema da presença da pintura chega à discussão contemporânea, que questiona a permanência da linguagem.

A referência à morte de São Francisco está presente, assim como a forma da tumba, que durante muito tempo deixou “morta” a pintura, revelada posteriormente. Histórias de três tempo se acumulam para impregnar o presente.

MOUNTAIN, 1994

260 x 178cm

Laca e pó de madeira sobre tela

Coleção particular

Ainda em diálogo com a história da arte, Senise se volta desta vez para Caspar David Friedrich (1774-1840), pintor romântico alemão do século XIX, que se destacou pelas paisagens líricas, religiosas e poéticas, que falam da condição humana diante da imensidão da natureza e do divino.

A partir de Encostas Rochosas em Rügen, produzida pelo mestre alemão por volta de 1818, Senise realizou duas obras: Cliff e Mountain, alterando o sentido da imagem ao inverter suas cores e a relação figura-fundo. Na primeira tela, as encostas transformam-se em penhascos que se abrem para um abismo; na segunda, o artista usa a imagem em negativo. Apropria-se do vão da encosta – que no quadro original se abria para o mar e o céu fundidos no horizonte – e o transforma em uma gigantesca montanha envolta pelas nuvens, como a ponta de um iceberg a se agigantar na parte imersa. A imagem é ampliada três vezes mais que a original, colocando o espectador diante da imensidão do abismo e da elevação da montanha.

A atmosfera lírica de Friedrich é resgatada, apesar do tratamento totalmente diversificado dos materiais pictóricos empregados por Senise. Laca, pó de madeira e reagentes combinados são fatores fundamentais para criar a atmosfera desta pintura, cujo significado é condicionado pelo processo e pela materialidade. “O pigmento como portador de ideias plásticas, o processo como outro aspecto do conteúdo, a superfície como artifício e evento”, escreve o crítico Roberto Tejada.

BUMERANGUE, 1994

165 x 256cm

Esmalte sintético e óxido de ferro sobre tela

Coleção particular

Além desta obra, Senise produziu mais duas com o mesmo título. Elas descrevem trajetos de um bumerangue e formam um tríptico, embora também conservem certa autonomia. O trabalho desdobrou-se posteriormente na tela 3 Caminhos, que joga com a sobreposição desses três percursos, agregando a silhueta de uma menina.

Novamente, o artista utiliza pregos oxidados. Eles desenham sobre a superfície o trajeto do bumerangue, que vai e volta para o mesmo ponto. O percurso traçado fluidamente no ar durante o voo é representado na superfície da tela, paradoxalmente, pela construção minuciosa do desenho, sofrendo a reação dos materiais e do tempo, configurando lentamente uma linha que se forma a partir de fragmentos de linhas. Fluência versus fragmentação, rapidez versus lentidão.

Para Senise, o processo eleito na ação artística está aliado à intenção poética do pintor e interfere no significado da obra. Ao deixar sua marca, o prego “também cria outras leituras, outros tipos de significados. Meu desejo é que, no final, a pintura esteja contando uma só história (…). A série do bumerangue, por exemplo, feita com preguinhos, tem um nível poético que me interessa — uma narrativa, uma história acontecendo —, e tem também o legado moderno. (…) A superfície está lá viva, como registro do evento que é o prego enferrujando, possui uma narrativa virtual que é o voo do bumerangue, invisível, mas cuja trajetória está lá”, observa o artista.

“Em um mesmo corpo”, pondera Marco Silveira Mello, “três figurações ocorrem: a da presença dos pregos, a do bumerangue e o movimento que ele realiza no espaço”.

Investigando o processo artístico de Senise, Cecília de Almeida Salles nos conta: “Suas próprias anotações apontam para a importância que ele dá à fisicalidade da pintura, que implica procedimentos de exploração das propriedades físicas do quadro e discussão da superfície da tela. Sob essa perspectiva, suas obras deixam transparecer um trabalho de experimentação permanente que, ao expor a olho nu a natureza investigativa da arte, a aproxima de modo irrecusável da busca científica”.

PAISAGEM COM LEVITAÇÃO, 1995

130 X 190cm

Acrílica, pó de ferro e laca sobre cretone

Coleção particular

O desconcertante nesta paisagem é a relação paradoxal que Senise provoca entre figuração e abstração, entre a figura e o fundo. Referindo-se à maneira como as figuras se apresentam na produção do artista, Roberto Tejada diz: “É difícil determinar se a obra é sobre a imagem principal ou sobre o ambiente no qual ela paira”, ou, como diz Gabriel Pérez-Barreiro: “As grandes áreas não decifradas nos quadros de Senise não servem apenas como pano de fundo para as figuras centrais, mas antes como parte intrínseca do exercício do olhar para uma pintura”.

O espaço aéreo e o espaço terrestre integram-se à figura desproporcional da silhueta da menina suspensa no tempo, evocando o passado ou quem sabe o futuro. Senise nos conta que a silhueta da menina deriva originalmente de uma apropriação de livros infantis. Curiosamente, surge pouco tempo antes do nascimento de sua filha Zoë e, na pintura posterior Zoë e o Urso, transforma-se no perfil da própria filha, envolvido pelo de um urso — a relação entre figura e fundo é mais uma vez desafiada.

“Imagens atordoantes incrustadas em superfícies pictóricas construídas de maneira peculiar, elas atravessam paisagens nas quais o mundo visível, com suas limitações, é lentamente substituído por objetos produzidos por uma “ânsia de objetos inexistentes”, observa Ivo Mesquita.

A figuração passa a ser responsável pela abstração da imagem. As figuras se organizam e se relacionam segundo a intenção do artista e não na ordem das coisas do mundo visível, deixando para o espectador a impossibilidade de se apoiar na realidade externa para apreender o significado da obra. Pairamos sobre a obra da mesma forma que a enigmática imagem paira sobre a paisagem. “Em parte é isso que torna tão potentes as imagens desse artista: a capacidade que elas têm de reter uma qualidade mágica, que não pode ser explicada recorrendo-se ao conteúdo, à narrativa ou às circunstâncias”, pondera Pérez-Barreiro.

HAUS LANGE, KREFELD, 2001

130 x 200cm

Monotipia de meio acrílico e resíduos sobre tecido em colagem justaposta sobre madeira

Coleção particular

Desde o final da década de 1980, Senise utiliza a técnica de “colagem”, que conferiu singularidade ao seu trabalho. Surgida a partir de um acaso já narrado na biografia, a técnica foi desde então incorporada ao procedimento pictórico do artista. Consiste em estender sobre o chão do ateliê uma tela já trabalhada e úmida que, ao secar, agrega resquícios do solo, fundindo tempos e espaços distintos.

Em suas frequentes estadias em Nova York, o pintor descobriu uma série de impressões de chão em imensos tecidos, impregnando-os com a memória dos espaços e associando a dimensão temporal e espacial na “representação” de um “lugar”. Quando se mudou para Nova York em 2000, pendurou essas peças no ateliê, à espera de que algo lhes desse mais sentido. Foi quando teve a intuição de criar as imagens a partir delas – e não sob ou sobre elas —, inaugurando um novo processo.

As próprias impressões passam a ser o campo e os elementos da representação. Com todo o rigor perspectivo, o artista reproduz ambientes arquitetônicos de seu ateliê, instituições artísticas e casas de amigos, ou apropria-se de espaços de pinturas clássicas. Espaços que guardam memória.

Nesta obra, reproduz o interior do Museu Haus Lange, em Krefeld (Alemanha), um projeto residencial desenvolvido em cerca de 1930 por Mies Van der Rohe (1886-1969), depois transformado em museu de arte contemporânea. Do chão à parede, na transferência de um plano horizontal para o vertical, Senise cria uma ilusão espacial apoiada em um recurso clássico da pintura, o trompe l’oeil. Em alguns pontos, o quadriculado da tela coincide com as pedras que formam as paredes pintadas. Mais uma vez, o artista lida com os elementos tradicionais da linguagem pictórica, propondo uma abordagem contemporânea.

BOILLY, 2002

200 x 300cm

Monotipia de meio acrílico e resíduos sobre tecido em colagem justaposta sobre madeira

Coleção particular

Utilizando-se do mesmo procedimento da obra anterior, Senise apropria-se aqui do espaço de representação da pintura neoclássica A Game of Billiards, produzida por Louis-Leopold Boilly (1761-1845) em 1807. Como observa Agnaldo Farias, ocorre aqui um movimento interessante: “Dos espaços para a arte para os espaços na arte (…). A pintura em seus parâmetros clássicos é visitada criticamente para, descarnada de atmosfera, pessoas e mobiliário, converter-se na base de uma nova pintura”.

Senise “apaga” a cena de Boilly, dando a ver somente o espaço em que ela se desenvolve. Esvazia a dimensão temática da obra original e enfatiza o espaço perspectivo no qual acontece a cena, a fim de apresentar o espaço da pintura. Na imagem do pintor francês de escala reduzida, encontram-se inúmeras pessoas que se aglomeram em torno de uma mesa de bilhar, mulheres e homens, crianças e idosos, nobres e servos – podemos até ouvir o burburinho provocado pela multidão. No espaço de Senise, paradoxalmente, habita o silêncio e o vazio.

“O silêncio parece ser o assunto dessa tela, conclui-se enquanto os olhos vagam por esses espaços que escorrem um para o outro”, assinala Farias.

O quadro integrou a mostra The Piano Factory (2002) no lnstituto Tomie Ohtake, em São Paulo, ao lado de outros em que o pintor utilizou o mesmo procedimento com intenções similares. Obras de grandes dimensões posicionadas em um ambiente amplo e agrupadas em “famílias” estabelecem uma conexão entre o espaço expositivo e o espaço ilusionista proposto pelas telas. Espaços abertos que se abrem para os espaços da pintura. O espectador, por sua vez, encontra-se imerso nesse ambiente de fusão, envolvido pela espacialidade real e ilusória.

“Daniel pinta a ausência, e ao fazê-lo não somente discute o esvaziamento da representação, mas principalmente reinstaura o espaço da pintura. O que foi considerado o fim, é o início de seu trabalho”, escreve Viviane Mosé.

PISCINA 2, 2003

195 x 290cm

Monotipia de meio acrílico e resíduos sobre tecido em colagem justaposta sobre madeira

Coleção particular

Dando continuidade ao trabalho com ambientes arquitetônicos, Senise explora espaços vazios, retirados do mundo comum, como a piscina de seu ateliê. Agora, porém, o que importa não é a referência ao lugar de origem, e sim o espaço ilusório como possibilidade de devaneio em si.

A ideia de piscina permanece quando o artista utiliza o pigmento azul combinado ao desenho quadriculado da textura impressa. O pintor olha para o chão, joga com as analogias entre os desenhos dos tacos e remissões ao mundo externo, que oferecem sinais para a nossa leitura.

Nesta obra, o piso apresenta um desenho diferenciado na composição dos tacos, que remete ao quadriculado dos azulejos. A intensidade do azul provoca a ilusão de materialidade da água, evoca sua presença em nosso imaginário e nos convida a um mergulho nesse vão, acentuado pela declinação. Afixado à parede, esse buraco que se abre debaixo de nós se impõe verticalmente ao olhar e desestabiliza o solo sob os nossos pés.

O plano horizontal é transposto para o vertical. No texto O Chão Andaluz, Arthur 0mar (1948-) nos conta sua experiência sobre essa passagem que presenciou visitando o ateliê do artista. “Não sei por que me fixo nesse instante em que o que era plano horizontal gira e muda de orientação. Como um ato inaugural, um gesto épico. […] Monumentalidade feita com poeira. Giro épico, que deveria ser guardado na memória perceptiva dessas obras, pois ali se dá a transmutação verdadeira em busca da fase final. Emanação”.

MYSTY PEACH VISION PETAL, 2004

215 x 215cm

Acrílica sobre colagem em madeira

Coleção particular

Em busca de superfícies para suas impressões, Senise depara-se com este solo carregado de impurezas que, curiosamente, depois de impresso, revela a mancha vermelha, imperceptível a olho nu. Fenômenos do acaso que ganham sentido no processo.

Esta produção se desdobra em um tríptico, o que permite ao pintor sugerir que entre uma e outra tela transcorre um tempo. Feitas em momentos distintos sobre o mesmo solo, somente com água e cola branca, impressões diversas geram diferentes imagens, que ao serem combinadas, ganham sentido poético.

Observando a obra, temos a sensação de que a imagem em vermelho foi pintada pela mão do artista, mas ela também foi apropriada a partir de um encontro fortuito. Assim, Senise registra a impressão de um corpo ausente e mantém a ideia do sudário.

Como ele mesmo conta, o título Misty Peach Vision Petal vem de outra coincidência. Esses quatro vocábulos figuravam em um jogo de ímãs de geladeira com diversas palavras soltas a serem compostas em frases. A combinação que se vê no título foi feita por Zoë, filha caçula do artista. Destacadas em letras maiúsculas, para mostrar que conservam sua independência, cada uma guarda o seu sentido singular: Misty — Enevoado; Peach – Pêssego; Vision – Visão; Petal – Pétala. Reunidas, porém, conquistam um nível poético que enfatiza a “epiderme” da pintura: Senise retira a pele do chão, que remete à pétala, à cor do pêssego, à visão enevoada. Nesse espaço sem solo “entre” a palavra e a imagem, acontece o devaneio do pintor e do espectador.

CASA, 2005

215 x 430cm

Monotipia de meio acrílico e resíduos sobre tecido em colagem justaposta sobre madeira

Coleção particular

Mais uma vez, o acaso é determinante no processo artístico de Senise. Ao resgatar tecidos impressos, acumulados para posterior utilização, o pintor encontra esta imagem, que tinha sofrido a interferência externa de uma goteira no lugar em que foi acondicionada. Quando exposta, ela revelou essa grande mancha muito simétrica, que atravessa toda a composição, como uma paisagem.

Dada a simetria e a qualidade da configuração da mancha, Senise viu-se diante de uma forma surpreendentemente semelhante à do sudário, imagem que rege e transpassa boa parte dos procedimentos artísticos do pintor desde o final da década de 1980, tendo sofrido inúmeras transformações desde então.

No início, foram as experiências com tinta a óleo. A opção deliberada de imprimir em tecidos as superfícies do chão e de se utilizar da oxidação de pregos permitiu eliminar cada vez mais a expressividade do gesto e a marca individual do artista, que passou a trabalhar com imagens como que reveladas, e não produzidas por ele. Imagens que representam ausências.

Sobre o resultado da ação dos materiais pictóricos no tempo em reação com outros acontecimentos de percurso, Senise constrói a “casa” e edifica a sua ideia. A simetria da forma que aparecia na superfície inicial é fundamental para determinar a imagem que será trabalhada sobre ela. A imagem sobreposta e composta a partir de recortes de suas impressões de superfície, que configura a estrutura da construção, obedece aos mesmos critérios de simetria, provocando um espelhamento que se dá em todas as direções, da direita para a esquerda, de cima para baixo.

REINO I, 2006

200 x 300cm

Monotipia de meio acrílico e resíduos sobre tecido em colagem justaposta sobre madeira

Coleção particular

Agora, as colagens das superfícies impressas compõem uma paisagem imaginária com espaços, cores e elementos arquitetônicos. Retirados de imagens renascentistas e organizados segundo a vontade do pintor, eles criam uma espacialidade fantástica, querendo evocar o sentido literal do termo — a fantasia.

“Construções utópicas, sem um lugar preciso, apenas marcações de espaço constituído por vigas, planos, colunas, encaixes e volumes. As imagens apontam para um mundo em constante movimento — o rio, o mar, as nuvens, os estados gasosos, as suspensões — e instável, causando a sensação de que esses espaços, os volumes e os objetos não se acabaram de construir ou estão em processo de desmanche”, descreve Mesquita.

Merleau-Ponty (1908-61) observa que “o ensinamento clássico da pintura baseia-se na perspectiva — ou seja, no fato de que, diante de uma paisagem, por exemplo, o pintor decidia transportar para a sua tela só uma representação totalmente convencional do que via”. Em outras palavras, a perspectiva clássica encontra um “denominador comum” — o ponto de vista do observador — para as variadas perspectivas do espaço, conferindo a sensação de  estabilidade à obra.

Em Reino l e em outras obras da série, realizadas nesse período, Senise constrói um espaço perspectivo autônomo, que não se baseia na observação do real e muito menos nas coerências perspectivas do Renascimento, que reduziam tudo o que era visível a um ponto de fuga fixado no infinito, para onde o observador mirava, como se estivesse diante de uma janela, à distância. Na construção proposta por Senise, o espectador é envolvido pelo espaço, pertence a ele. As formas vagueiam por uma espacialidade flutuante, planos invisíveis são identificados pela perspectiva de portas e janelas suspensas.

Derivado da concepção cubista e atualizado para a percepção contemporânea, temos aqui “um espaço heterogêneo, com direções privilegiadas, que tem relação com nossas particularidades corporais e com nossa situação de seres jogados no mundo”, observa Merleau-Ponty.

LEGENDA, 2008

301 x 201cm

Cretone com impressão de cimento e objeto plástico

Coleção particular

Imensa superfície que contém um pequeno objeto — eis um dos tantos paradoxos desta pintura. O amplo espaço dignifica o estranho objeto, que não sabemos de onde vem nem o que é. Pairamos entre o não saber, com tudo a ver — e no desvão entre o visível e o invisível é que se instaura a poesia.

Na intrigante visibilidade da imagem, entramos em contato com sua invisibilidade. Ao procurarmos compreender algo que nos escapa, percebemos a antiguidade, o arcaico, o passado. Imaginamos que ela vem de longe. Mas depois, ouvindo o artista falar sobre o procedimento da pintura, nos surpreendemos ao saber que origem deste quadro é a impressão do piso do ateliê do artista, sobre o qual ele cola um banco de plástico.

Um espaço próximo, marcado pelo uso, pelas tintas que respigam ao longo da produção, pelo tempo de trabalho com a pintura. O território do artista.

Do banal ao sublime, este é o maior paradoxo desta tela. Um banco e um chão que a princípio não carregam significado em si conquistam a dimensão do sublime ao se transformar em pintura. Da condição ordinária, de sujeira do ateliê, a de algo precioso; dos restos das coisas à essência da coisa.

O título Legenda refere-se, ironicamente, às legendas que identificam as obras nos livros e nas exposições, esclarecendo ao espectador os títulos, a datação, a procedência e a qualidade. A legenda é o primeiro ponto de apoio quando não temos as respostas para aquilo que está diante de nós. Como recurso de entendimento da obra, porém, substitui às vezes a própria percepção do observador.

Neste quadro, entretanto, se vamos a ela em busca de respostas encontramos no título outra pergunta, uma interrogação, o que nos dá o direito de pairar sobre a imagem com as nossas próprias referências, nosso entendimento e nossa sensibilidade. Parafraseando Kant, podemos sobrevoá-la no livre jogo entre imaginação e entendimento.

EVA, 2009

Tijolos de papel de catálogos e convites de exposições, cola PVA e gesso

Coleção particular

Eva é a primeira instalação/intervenção realizada por Senise e foi executada diante do público no período em que esteve exposta no Centro Cultural São Paulo.

O ponto de partida foi a escultura homônima, realizada por Victor Brecheret em 1919. Um dos marcos iniciais do Modernismo brasileiro, essa obra de Brecheret encontra­-se na porta da entrada principal do Centro Cultural e pode ser vista até mesmo pelos transeuntes que circulam na calçada. Ao longo de quatro meses, Senise empilhou tijolos em torno dela.

Cercou-a com quatro paredes até a escultura desaparecer completamente, tendo o público como testemunha. “Até que a certeza de sua presença não se faz pela presença do visível. Entretanto sabemos que ela está ali”, pondera Mello.

Os tijolos foram confeccionados no próprio Centro Cultural, a partir da reciclagem de materiais como folders, convites e catálogos utilizados para a divulgação dos eventos da instituição, tendo como material aglutinante cola PVA e gesso. Com esse gesto, Senise apaga as informações e as imagens (referentes ao circuito artístico e impressas nos materiais), em vez de revelá-las.

Ao apropriar-se da escultura de Brecheret e dos objetos que circulam na mídia para que o público acesse as obras, reúne a memória da história da arte com a memória da instituição, a produção histórica com a produção contemporânea, encobre a história e recicla o presente, instigando o espectador sobre a presença e a ausência da arte e de sua história em nossa formação e em nosso imaginário.

Ao encobrir Eva, a primeira mulher, produz imediata associação desta obra com outras, em que se refere à presença e à ausência da mulher, como Ela que Não Está e Retrato da Mãe do Artista. “Ausência, então, é o conceito-chave do artista, com o qual edifica um jogo de acesso às diferentes camadas da memória“, observa Maria Iovino (1961-). Assim, o artista tematiza uma vez mais aquilo que está e ao mesmo tempo não está mais ali —porém, em um processo que é inteiramente testemunhado pelo público.

HALLWAY, 2010

119 x 720cm

Aquarela em colagem sobre madeira

Coleção particular

A grande dimensão desta pintura parece se ampliar ainda mais, quando nos damos conta do procedimento pictórico do artista. Ele retoma a prática da pintura e, dessa vez, a técnica eleita é a aquarela. Cada módulo da composição fui executado um a um, pintado de forma minuciosa e paciente.

Hallway pertence a uma família de obras à qual Senise vem se dedicando nos últimos anos, desenvolvidas a partir do chão de tacos de sua sala de televisão, que tinha sido adaptado pelo artista quando se mudou. Os tacos estavam inicialmente arranjados em “espinha de peixe”. Incomodado com a dinâmica das peças, Senise alterou o padrão e refez todo o piso compondo os tacos alinhados em um único sentido.

Senise executou Hallway passo a passo, deixando a pincelada fluir numa dedicação artesanal constante e meticulosa, enquanto assistia à teIevisão. As partes compõem o todo. Quando nos atemos a elas, vislumbramos pequenas paisagens; quando nos distanciamos, deparamos com variações de uma única paisagem em mutação constante. Os recortes que quebram a forma retangular do campo pictórico nos remetem às plantas de casas que dimensionam o lugar das saídas e das entradas do hall, espaço de ligação que nos leva a outros ambientes.

Elisa Byington comenta que “Daniel inicialmente chamou o trabalho das aquarelas de ‘espera’”, o que nos leva a pensar no tempo que levou para executar o projeto. “Espera não era um título”, continua a historiadora, “mas o estado de espírito que impulsionava o trabalho em escala 1:1 e criava um duplo da realidade representada. […]. O espaço bidimensional e finito é a imagem de um tempo mensurável em que o tempo evocado é o tempo necessário ao pintor para realizar a tela. Uma imagem literal que se instala na brecha entre os desejos e a afirmação dos sentidos no tempo presente. Além do passado, aquém do futuro. Tempo entre os espaços.”

SKIRA, 2010

260 x 150cm

Papéis de livros de arte colados sobre alumínio

Acervo da Galeria Silvia Cintra (Rio de Janeiro)

Exposta na XXIX Bienal Internacional de São Paulo em conjunto com a instalação O Sol Me Ensinou que a História Não É Tão Importante, Skira foi colocada na parede externa da instalação, provocando o diálogo e ampliando a leitura que cada obra propõe isoladamente. Reunidas, as duas se complementam e auxiliam a percepção da produção de Senise como um todo, criando uma terceira leitura.

O ponto de partida foi a coleção de livros de arte Skira, de meados do século XX, quando era comum que as reproduções das pinturas coloridas viessem impressas em uma folha avulsa, posteriormente colada no volume. A parte impressa do livro só continha a legenda. Senise retira as reproduções de obras e utiliza-se apenas das páginas em que estavam coladas, nas quais restam apenas a numeração e as legendas das obras.

A princípio, contemplando o todo à distância, o que percebemos é um espaço perspectivo repleto de nichos. Conforme nos aproximamos, tanto pela direta como pela esquerda, temos a ilusão de que o espaço se aprofunda e nos damos conta da circularidade do ambiente que nos envolve. De longe, percebemos os nichos como volumes em forma de prateleiras, remetendo a outras obras em que o artista utilizou a mesma formatação de espaço. Mas quando nos aproximamos, o que julgávamos ser prateleiras se revela recortes revestidos com fragmentos das páginas dos livros colados sobre uma superfície plana de alumínio.

Conforme Iovino: “Espaços bidimensionais de aparência tridimensional são, basicamente, construções planas que encerram um número incalculável de dimensões, manifestado nas memórias trazidas por cada fragmento de gravura que as conforma”.

O SOL ME ENSINOU QUE A HISTÓRIA NÃO É TÃO IMPORTANTE, 2010

600 x 1.200cm

Placas feitas com material reciclado

Coleção particular

Como já foi dito, a obra Skira estava na parede externa desta instalação exposta na XXIX Bienal Internacional de São Paulo, provocando a conexão entre ambas. O espectador entra no espaço da instalação com a leitura da obra que a precede. O que encontra é um espaço vazio entre quatro paredes neutras construídas por placas quadradas. Mas que placas são essas? Aproximando-se, percebe outras ocorrências, múltiplos pontos coloridos: essas placas foram feitas uma a uma, do mesmo material que o artista usou na obra Eva (p. 80), reciclando catálogos, folders e convites de instituições artísticas e dando ao espectador a possibilidade de “sentir a presença invisível, em uma quantidade impossível de saber, de outros   acontecimentos relativos à arte, que aqui comparecem por intermédio de suas memórias”, como observa Marco Silveira Mello.

É significativo que o crítico fale “em uma quantidade impossível de saber”, o que nos remete ao vasto conhecimento da história da arte e à quantidade de eventos artísticos contemporâneos que nunca teremos condições de abarcar, por mais que nos esforcemos.

Na verdade, todas as nossas conjecturas sobre a obra encontram-se no plano da invisibilidade. Os pontos coloridos aludem a uma arte que não pode mais ser acessada. De acordo com Mello: “Foram apagadas no decorrer dessa construção. Comparecem somente como uma sobra, um espectro de outras vidas. O que implica que a história — ou aquelas histórias — não se encarna propriamente nas placas. Mais correto é dizer que as paredes, isto sim, representam a história, a história da arte”.

As dimensões da instalação correspondem exatamente ao tamanho do ateliê de Senise. O lugar da arte dimensiona o espaço da arte. “O sol me ensinou que a história não é tão importante” é uma frase extraída do prefácio de L’Envers et l’Endroit (1937), livro de Albert Camus (1913-­60) que impactou o artista. “Acredito que toda a cultura que criamos não ganha da natureza. A natureza é sempre mais forte, um dia vai calcinar tudo e vai ficar tudo branquinho”, afirma Senise.

2.892, 2010

Instalação com lençóis e madeira

Branco 462 – (lençóis de hospital) 630 x 2.080cm

Branco 2.430 – (lençóis de motel) 690 x 1.935cm

Coleção particular

Na época em que ia constantemente para Nova York, Senise concebeu um projeto que não tinha encontrado o lugar nem a hora de acontecer, até frutificar com esta obra, realizada em 2010 e exposta na Casa França-Brasil, em um belíssimo edifício do século XIX. A arquitetura do prédio, trabalhada do piso ao teto, contrasta com as imensas paredes brancas que irrompem no espaço.

Quando projetou o trabalho, o artista imaginou, conforme suas próprias palavras, “duas telas enormes frente a frente. Dois brancos de qualidades diferentes, um lado composto por lençóis de hospital e o outro composto por lençóis de motel. A indicação da origem dando a qualidade do lugar”.

Senise doou os lençóis para as duas instituições, alterando o local do logotipo para identificar as peças. As instituições selecionadas foram o Instituto Nacional do Câncer (lnca) no Rio de Janeiro e um motel, nos quais os lençóis ficaram em uso por seis meses antes de serem montados na instalação. Paredes opostas abrigando memórias de vidas em situações extremas e distintas. “Em cada superfície centenas de pessoas passaram deixando suas marcas, quase sempre invisíveis”, comenta o artista. Presenças invisíveis que conferem a qualidade dos brancos. O sudário está na gênese dessa ideia. Marcas que revelam a presença de corpos ausentes na dor e no prazer.

O número 2.892 corresponde à quantidade estimada de pessoas que passaram pelos lençóis: cerca de 462 sobre os brancos do hospital e aproximadamente 2.430 sobre os do motel (Senise contou com a colaboração de um matemático para os cálculos). A desproporção entre os números é digna de nota, provocando divagações sobre a obra, na medida em que diferentes temporalidades se confrontam: o tempo do motel e o tempo do hospital, a fugacidade do prazer e a permanência da dor.

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