Daniel Senise

A Intimidade na Pintura

Viviane Mosé

Texto publicado no catálogo da exposição do artista na Galeria Brito Cimino, São Paulo, em 2001.

O esgotamento da capacidade da pintura como linguagem resulta do desmoronamento de uma rede mais complexa do que simplesmente o esgarçamento das suas possibilidades. O que foi e ainda é colocado em questão não é somente o limite da pintura, mas a própria atividade simbólica, o pensamento. Hoje sabemos da impossibilidade do projeto platônico de atingir a essência da vida pela via da representação. Impossibilidade que resulta não somente do limite da representação, mas da ausência de essência da vida. A representação não atinge a essência, porque não há uma verdade essencial por trás das coisas. As próprias coisas são a superfície oculta das coisas. Esta perspectiva permite o alargamento do signo, na medida em que o liberta da supremacia do sentido. Ao mesmo tempo, faz ruir as bases sobre as quais toda a construção conceitual humana se sustentava. A estrutura do pensamento parece ruir. E à arte, que não se deixa morrer junto com a morte de seus conceitos, resta reinventar a si mesma, o que hoje implica em reinventar o pensamento.

“Como produzir algo de inesperado quando não existe mais espera?”

Ao insistir na busca daquilo que é próprio da pintura, Daniel Senise trabalha sobre o que a pós modernidade considerava superado. Antes de tudo, o artista atualiza o estatuto da pintura, tornando-a não somente agente, mas modelo. Ao pintar a si mesma, a pintura torna-se a própria paisagem. E a paisagem da pintura é ausência: pintar agora não significa mais do que utilizar signos, que não são outros senão os signos da pintura. Nesta operação, a paisagem não é dada apenas pelo olho, mas através da coleção de representações que foram sendo agregadas pela cultura. Então Daniel pinta a ausência, e ao fazê-la não somente discute o esvaziamento da representação, mas principalmente reinstaura o espaço da pintura. O que foi considerado o fim é o início de seu trabalho.

Inicialmente trabalha com restos do que desmorona: rastros da história da arte, do universo das imagens, e da indústria cultural com seu imaginário coletivo. Trabalhos onde formas quase monumentais se impõem, sem, no entanto, apresentarem qualquer conotação temática. São imagens soltas, livres do aprisionamento do sentido, “fragmentos de algo que já esqueceu o todo e busca uma outra existência”. A elaboração, cada vez mais adensada da superfície, discute a relação figura e fundo. As formas, isoladas, são em geral aplicadas sobre o fundo de tal maneira que dão a impressão de que são parte da superfície. As imagens resultam de uma determinada articulação entre superfície e representação. “Essa articulação só é possível porque a matéria, determinada pelo modo como o suporte é tratado, integra os objetos pintados à superfície da tela”. A paisagem que esta pintura representa é cada vez mais interna à pintura. Como se o plano, desdobrado em superfície e representação, dialogasse consigo mesmo.

O que se percebe nos atuais trabalhos é uma ampliação da tensão presente nas obras anteriores. Agora, a confirmação do suporte surge a partir de dobras da superfície. Os diversos pedaços de chão recortados e colocados são a imagem. A imagem é interna à própria superfície, ao mesmo tempo em que é externa. A paisagem, este desenho que o recorte de chão apresenta, por vezes desaparece: umas vezes o que vimos é uma superfície de chãos, outras vezes uma paisagem. A tensão que havia entre a superfície e a imagem é mantida agora no interior da própria superfície. O tecido que suporta é o chão que registra. Daniel explora a intimidade da superfície. E constrói aí sua paisagem. Neste espaço, entre o tecido e o chão, ele nos insere. Diante dos imensos pedaços de chão, recortados e colados em forma de parede e teto, em forma de porta e vãos, em forma de chão, somos espectadores da intimidade da pintura.

“A natureza hoje é linguagem.”

A impressão do chão é o registro de sua ausência. Como um desenho ou uma palavra escrita em uma página, a impressão do chão é uma imagem. Ao mesmo tempo, esta imagem passa a funcionar como superfície. E esta superfície­imagem vai se dobrar em uma nova imagem que é o espaço representado. E mais uma vez se dobra quando este espaço representado é o espaço onde a obra foi construída. A imagem como dobra da superfície que mais e mais uma vez se dobra.

Ao mesmo tempo em que chama a atenção para o predomínio da representação, Daniel utiliza partes arrancadas da paisagem (chão) para construir sua representação; o próprio chão (matéria) que permanece na ausência de chão (imagem).  A impressão é uma presença/ausência do chão, o que não deixa de ser um retorno à matéria, simultânea a seu desaparecimento. O fim das verdades e das essências é também o fim das polaridades. Figura e fundo, superfície e imagem, figuração ou abstração, sem desaparecer, mantendo sua singularidade, ainda assim coincidem. O domínio do sucessivo é substituído pelo simultâneo.

A arte não se opõe mais ao pensamento, como a matéria não se opõe à representação.

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