Daniel Senise

The Piano Factory

Agnaldo Farias

Texto publicado no catálogo da exposição Daniel Senise realizada no Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, em 2002

Essas imagens estão impregnadas de vazio e silêncio. Já à distância, ao transpor a porta e caminhar ao longo da sala estreita de paredes brancas e nuas em direção à parede do fundo que está praticamente encoberta por uma única pintura de três metros por três, uma pintura cinza com a escala do próprio ambiente, o visitante sentirá uma vertigem sutil, como se o espaço por onde está andando se distendesse, espichando-se para o fundo, efeito da imagem que essa pintura traz: uma vista parcial de uma sala que desemboca numa porta aberta que dá para uma outra sala ao fundo da qual se vê uma outra porta aberta que por sua vez dá para uma outra sala mais adiante e ao fim dela mais uma porta ainda, numa sucessão intrigante como aquelas bonecas russas de madeira que desatarraxávamos para encontrar uma outra dentro e depois outra e mais outra até que enfim quedávamo-nos com uma pequenina boneca compacta, sem oco, e então entendíamos que ela era enfim o grão, que a coisa acabava ali. Só que aqui não, não é bem este o caso, uma vez que as salas são desabitadas e não há nada ao fim delas, nada nas paredes ou sob os umbrais, diante ou por detrás deles que interrompa a monotonia desses ambientes encadeados entre si. O silêncio parece ser o assunto dessa tela, conclui-se enquanto os olhos vagam por espaços que escorrem um para o outro. Mas o que mais nos chama para perto dessa imagem, aos poucos se vai entendendo, é que, além da sua imponente perspectiva a coincidir e anexar para si a sala/corredor real que percorremos, de perto sua cor cinza vai se dissolvendo em uma textura hachurada e, aí sim, ruidosa, uma superfície composta de faixas paralelas entre si, separadas por uma mesma linha fina e reta, repleta de manchas, nódoas, cortes, ranhuras, traços e lacerações, como uma obra feita pelo acaso, ao sabor de acidentes diversos. E é neste exame que se percebe a recorrência do padrão orgânico dos veios de madeira e então se descobre que a superfície dessa pintura, assim como todas as outras presentes nas três salas dessa mostra de Daniel Senise, foi obtida do chão, arrancada do chão, não desse chão em que se está pisando nesse momento, é claro, mas de um outro chão dotado de tábuas de madeira e que agora está levantado diante de nós, obrigando-nos a palmilhar com os olhos sua natureza concreta e tangível.

Desde fins dos anos oitenta, portanto quase desde o início de sua trajetória, Daniel Senise faz uso desse processo que consiste em deitar contra o chão a face de uma tela já iniciada, com a tinta fresca, para depois de um tempo erguê-la. O resultado é uma troca entre as duas superfícies, dito de forma técnica, uma monotipia: de campo que passivamente recebe as sobras do processo, os excessos de tinta mais ou menos viscosos que caem durante a realização da pintura, o chão se converte num território ativo que deixa impressa na pintura suas marcas e até mesmo pequenos detritos que então se grudam nela. Essa maneira de incorporar o acaso sempre valeu como um comentário que se interpõe a pintura como um espaço de devaneio. À sujeira do chão colada à superfície da tela, convertida em dado dessa superfície, juntava-se a imagem realizada pelo artista. E se essa imagem era por si só dotada de interesse, o exame mais detalhado revelava a presença de outros elementos igualmente interessantes, muito embora espúrios, que em princípio não pertencem àquilo com que comumente se associa a pintura.

Nessa nova série de pinturas intituladas “The Piano Factory”, a maioria elaborada em seu atelier, uma antiga fábrica de pianos em Queens, bairro de Nova Iorque, onde o artista passou a residir nos últimos anos, ao invés da sobreposição do acidente com o cálculo, o artista inaugura um novo processo. Uma vez realizada a monotipia, do chão decalcar-se nas superfícies dos tecidos estendidos sobre ele, o passo seguinte consiste em o artista recortar esses tecidos em pedaços precisos, de acordo com a perspectiva geométrica de um ambiente arquitetônico. Os tecidos são desfeitos em uma série de planos regulares que serão remontados e colados variando a direção da textura original. Dessas diferenças exaltadas pelas linhas que unem os vários planos, surge a representação perspectivada de um interior arquitetônico.

Se a pintura, com suas somas e subtrações, com seu cálculo e seu embate com as limitações de toda ordem, será sempre uma afirmação, o chão impresso do atelier do artista evoca os passos percorridos, as cicatrizes deixadas por ele, pela gente que agora o frequenta e pela gente que já se foi dali; todos deixando sobre ele os resíduos de suas ações. Levantada do chão depois de ter pousado seu rosto sobre ele, fundindo-se a ele, o processo pictórico de Daniel Senise ausculta o presente, deixa-se impregnar por sua densidade, para melhor pensar o passado e o presente da pintura.

Se toda pintura é um ato afirmativo, conclusão que a pose estereotipada do artista empunhando o pincel contra a tela reitera, também é fato que ela nasce de uma nostalgia. Fixada numa parede, sua existência termina por sublimar a presença dessa mesma parede, oferecendo em lugar da sua opacidade, uma imagem. A ideia da pintura como janela, pintura como representação de algo, como signo de um corpo ausente, projeto levado ao extremo com a pintura de efeito “trompe l’oeil”, parece encontrar sua razão de ser na compensação da perda da paisagem que a construção de paredes impõe.

Contudo, ainda que sejam figurativas, essas pinturas põem por terra qualquer ideia de compensação. Mesmo porque não há como, nesta altura, escorar-se em qualquer representação, por mais verossímil que ela seja. Vai daí que optam pela materialidade que tomam emprestada do chão, uma referência tão enfática que tão logo reconhecida logra vergar os olhos de quem as contempla, embutindo-lhes gravidade e lentidão. E se diante dessas pinturas os olhos do espectador estão erguidos é fato que vão tendo a paulatina consciência do chão que lhe serve de apoio.

De volta à exposição, entrando-se na segunda sala ao final da parede direita da sala estreita por onde se acedeu, depara-se com um conjunto de telas representando ambientes arquitetônicos. Todos igualmente vazios e com a mesma baixa temperatura cromática, variando entre o cinza e o amarelo sujos, carregando os padrões e as ranhuras de chãos variados. De perto, consultando-se as etiquetas de identificação, fica-se sabendo que todas elas tratam de museus, representam interiores de museus e galerias internacionais. “Galícia Art Center”, “Huntington Hartford Museum”, repentinamente o alvo da melancolia fica sendo o próprio sistema de arte, com o crescimento exponencial dos últimos vinte anos de salas de exposição, convertendo-se nos templos de culto a objetos fetichizados, prometendo a fruição das obras de arte como a possibilidade de um parênteses no cotidiano opaco. Os pisos dos ateliers em que essas pinturas foram projetadas e construídas é a matéria-prima e o lugar de onde o artista pensa e realiza essas salas despojadas, nas quais as obras de arte e aqueles que as cultuam ou ainda não chegaram ou já se foram, embora possamos imaginar e reconstruir o murmúrio dos grupos e a coreografia respeitosa dos espectadores solitários, avizinhando-se da obra para verificar um detalhe ou para inteirar-se do nome do artista e do título da obra. Tudo aqui se mantém em compasso de espera, como os nossos olhos ansiosos por sobressaltos e surpresas.

Os ambientes são monumentais, a arquitetura exibe com orgulho a lógica implacável de sua estrutura, a regularidade das lajes nervuradas, a verticalidade hierática dos pilares, a vasta extensão de suas paredes limpas e cegas. Nessas arquiteturas não há janelas. Não há abertura para o exterior por onde se possa contemplar o universo. Não, definitivamente esse artifício é desnecessário: o mundo da arte é autossuficiente, as obras de arte bastam por si só e devem ser apreciadas sem interferências. E não deixa de ser estranho que depois de tantos artistas se baterem por estreitar os laços com a vida, a arte seja colocada num nicho à parte, como se dela estivesse separada em definitivo.

Por último, a terceira sala em que as pinturas trocam os espaços arquitetônicos reais de museus e galerias pelos espaços representados em pinturas. Dos espaços para a arte para os espaços na arte. Homologamente à estratégia de se projetar um espaço pretensamente neutro para o abrigo e exposição de obras de arte. Os espaços internos das pinturas de Edward Hopper, tema de uma das telas aqui apresentadas, são protagonistas na construção das cenas tristes, inundadas por luzes crepusculares que isolam em sombras homens e mulheres. Mas não que isso signifique que o artista se interesse por inventar novas narrativas. A pintura em seus parâmetros clássicos é visitada criticamente para, descarnada de atmosfera, pessoas e mobiliário, converter-se na base de uma nova pintura. Da imagem ao signo mais abstrato, a representação reduz­se ao seu termo mais estrito, regride à condição de esquema, cuja única substância possível capaz de lhe revitalizar é exatamente aquela que o artista lhe injeta: o sangue coagulado do chão onde pisa e trabalha.

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