Daniel Senise

Território de Infinitude

Maria Iovino

Texto publicado em Vai que nós levamos as partes que faltam: Daniel Senise, Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, 2011

Acessar uma obra tão particular como a de Daniel Senise pressupõe penetrar na cadeia de investigações e consequências que guiaram seus admiráveis achados e além do mais, entender nesse caminho que esta proposta, apesar de se desenvolver no domínio do bidimensional e daquilo que se entende como pintura, é inclassificável em um meio determinado.

Na obra deste artista, a pintura, a gravura, o desenho e a construção espacial convivem em um equilíbrio tão exato que não permite a demarcação de fronteiras técnicas entre os diferentes recursos. Nessa medida, localizar processos de trabalho exclusivamente em algum desses espaços, além de limitar a diversidade de possibilidades de reflexão que a obra oferece, nega a própria essência de qualquer meio que se queira entender como principal.

Daniel Senise gera suas imagens a partir de uma indagação que estabelece um diálogo entre impressões, tiradas diretamente de realidades diversas, e concepções de imagem e de espaço que são produto de sua reflexão. No entanto, são muitos os aspectos inovadores desta obra.  O primeiro é a própria natureza da matéria pictórica com que o artista trabalha. Faz pintura com a informação que extrai dos mais diversos lugares e, naturalmente, em tempos distintos e desiguais. Seu procedimento consiste em aderir a pisos, marcados pela passagem do tempo, telas tradicionais, usando uma mistura de cola de marceneiro e água, que espalha sobre as telas. Quando separa os tecidos, depois de um tempo de secagem, eles trazem matéria do lugar, do dado essencial da estrutura e da história em que se inseriram.

Isso quer dizer que, na pintura de Daniel Senise, a cor e o gesto provêm de traços da memória ou de vestígios da ocupação de espaços que se acumulam no plano único dos solos nos quais desenvolve parte de seu processo criativo; por isso, em primeira instância sua obra é um registro. Depois dessa captura monotípica do real, o artista fragmenta e mistura os cortes das distintas camadas de acordo com as formas projetadas nos desenhos que concebe – como um esquema arquitetônico – para cada obra específica e de acordo com as necessidades de luminosidade requeridas pela imagem que corresponde a cada desenho.

Em consequência, no momento de instalar os fragmentos das diferentes impressões em um suporte preparado para tal efeito, ele reúne, além da impressão e da concepção construtiva, uma soma de tempos e de espaços – tanto de forma real como metafórica. Acopla também neste exercício um jogo de suportes no qual conjuga a superfície em que realiza a obra, a tela que traz a impressão – que é, originalmente, um suporte para a pintura – e a matéria que traz de outros lugares, retirada dos pisos sobre os quais transitaram.

Daí parte uma das complexidades filosóficas e de interpretação deste trabalho, pois, não sendo exata a definição de suporte, que tradicionalmente se admite como o tema estável de uma argumentação, o conteúdo da obra se abre ao incerto e ao variável da simultaneidade. Na obra de Daniel Senise, convive, em uma mesma imagem e superfície, uma multiplicidade de suportes e histórias, mas, além disso, esses suportes representam espaços que são estranhos aos que pertencem. Não há correspondência entre o lugar de origem da monotipia e o espaço representado. Esse é um dos estranhamentos materiais produzido pelo artista, ao qual se agrega o fato de a construção ser uma sinfonia de memórias.

Isso pressupõe que, além da ilusão de perspectiva gerada pelas imagens de Daniel Senise em sua obra, há outras múltiplas perspectivas internas que comportam os tempos­espaços que se misturam em cada trabalho.

Esses espaços bidimensionais de aparência tridimensional são, basicamente, construções planas que encerram um número incalculável de dimensões, manifestado nas memórias trazidas por cada fragmento de gravura que as conforma.

Às vezes, a imagem obtida, trabalhada a partir de suportes, é uma impressão a mais. Assim, nesta obra, a conversão de tempos e realidades, somada à envolvente monumentalidade do formato e da própria imagem, quebra a limitação do plano e leva o espectador a um espaço distinto do meramente frontal, mesmo que isso aconteça também nos casos em que o formato nem sequer é monumental. Além do mais, às vezes esses suportes são o apoio de estruturas que se alçam ou se enterram no vazio: está é outra maneira que o artista usa para quebrar a qualidade de superfície do plano para convertê-lo em um universo em que a imersão não tem fim.

No plano e a partir do plano, as construções e projeções espaciais de Daniel Senise despertam no espectador a consciência da velocidade que o circunda. A metáfora seria então a de uma mobilidade incontrolável, pois cada questão no tempo e no espaço é cimento e apoio para outras: é uma das formas de circulação infinita que este trabalho oferece entre as noções de começo e de fim. O que indica que cada elemento no espaço é suporte e, ao mesmo tempo, superfície. As duas funções estão fundidas e também diferenciadas. As impressões dos pisos continuam aludindo a suportes de memória, mas alteram sua natureza em desenho sobre outro plano no qual o artista fala de profundidade.

Pelas mesmas razões, a humanidade e o sentimento povoam cada fragmento mínimo dos espaços racionais, desolados e abissais de Daniel Senise. Neles, a emocionalidade não é impressa apenas pela riqueza do gesto da matéria-prima e da vertigem que incita a exatidão do cálculo das projeções espaciais, mas também pela viagem a que conduz cada um de seus elementos componentes. Esse contraste entre o poder do gesto e o controle construtivo permite que se possa, no silêncio imponente da pintura de Daniel Senise, entender a voz mínima e imprescindível de cada partícula do mundo vivo.

Assim, apesar de sua estrutura geométrica e racional, é impossível ler uma obra como a deste artista a partir dos preceitos da pintura geométrica abstrata ou partir dos preceitos do modernismo, não obstante a repercussão que teve na arte e na arquitetura do Brasil. Tampouco seria possível acessar este trabalho a partir dos parâmetros de qualquer outro discurso ou tendência racional. Nenhum aspecto da obra deste artista está cercado por discursos. As propostas intelectuais são forças com as quais evidentemente o trabalho tem relação, mas elas devem ser desentranhadas nas maneiras específicas em que o artista estruturou seu pensamento e alimentou suas buscas de autodidata.

Por outro lado, é compreensível que os recursos organizativos das imagens de Daniel Senise revelem de maneira importante sua formação de engenheiro, embora em sua carreira de artista ela sobreviva em espaços já distantes e indefiníveis. Da mesma maneira, são inegáveis os diálogos sensoriais e racionais que estabelece com a tradição artística brasileira, assim como com a história da arte em geral. Mas, ainda assim, a personalidade deste trabalho   continua alheia aos marcos teóricos ou às referências estabelecidas. Não há citações da tradição ocidental, nem mesmo da latino-americana, a partir das quais possa ser lido ampla e suficientemente. Se, por necessidade conceitual, estes lhe forem impostos. O alcance de uma obra tão rica em conteúdos poderá ficar reduzido ao clichê. O que implica perder um aporte de grande valor para a construção filosófica e cultural da América Latina e, em particular, do Brasil.

As rotas que podem conduzir a uma apreciação mais completa e complexa de obras como a de Daniel Senise, que se apoiam em muitos territórios sem pertencer a nenhum, estão por construir ou em construção. Por essas mesmas razões, um trabalho como o seu, que não recorre às retóricas políticas e sociais, mas se edifica nas circunstâncias de um continente estigmatizado por essa visão, pode ser visto como um comportamento latino-americano atípico e, consequentemente, um lugar impreciso e vago.

Na América Latina, a proposta geométrica na arte foi lida, essencialmente, como uma contrarresposta à proposição geométrica abstrata formulada na Europa, não como racionalização própria ou como produto independente. Sempre em comunicação para negar ou para traçar independência em relação a alguns parâmetros que não é possível acolher ou que se evita favorecer. De qualquer forma, é lógico que tivesse sido entendido dessa maneira, na medida que na história do continente, assim como na da cultura ocidental, os temas abstratos se desenvolveram em um cenário difícil, no qual se tornaram híbridas as adoções e as imposições das culturas de maior poder econômico. Embora isso sempre tenha acontecido no meio de esforços notáveis para fazer adaptações que oferecessem interpretações de lugar, estas, pela própria condição política em que foram abordadas, em geral se politizaram, romantizaram ou, inclusive, se exotizaram como versões do subdesenvolvimento.

No entanto, é importante reconhecer hoje que o século XXI herdou do XX atitudes intelectuais e propostas artísticas que não são despenhadas na resistência, apesar de serem geradas ou fortalecidas em lugares tradicionalmente compreendidos, a partir de si mesmos e a partir de fora, nessa condição de contradição política.

No enlace ocorrido entre a maturação dos processos políticos da América Latina, da expansão da comunicação, da aceleração na cobertura e da capacidade de espaços da internet, assim como da popularização e da democratização dos transportes e das conexões entre diferentes lugares do mundo, cresceu com muita naturalidade o sentimento de pertencimento a uma cultura universal, ao lado da ideia de livre mobilidade por qualquer tipo de espaços informativos, educativos, culturais e, inclusive, geográficos e espaciais.

Não obstante, mesmo quando se considera que foi assimilada uma nova realidade em que as fronteiras do pensamento estão cada vez mais dissolvidas, persiste a permanência de discursos viciosos de identidade, fato que pressupõe a necessidade de amadurecer uma compreensão distinta na qual a comunicação com o lugar seja assumida de forma natural e não forçada, em uma competição entre dominadores e dominados.

É impossível reconhecer há mais de um século, e em especial no presente, o próprio território fora de um diálogo entre muitas culturas, espaços e interesses. O erro do discurso que se opõe ao identitário foi ter anulado a importância do lugar para favorecer um cenário vago no qual aparentemente não existiriam suportes de nenhum tipo para as diferentes concepções. O suporte pode ser desconcertante, múltiplo, variável e, inclusive, um assunto incógnito, como adverte a obra de Daniel Senise, mas existe.

Embora o fluxo do intercâmbio com outras realidades aporte constantemente novos dedos, o lugar onde se vive ou a partir do qual se olha o mundo como paisagem e como campo no qual se produz e se ouve determinada sonoridade não pode deixar de exercer uma influência decisiva no processo de construção do olhar. Assim, o lugar pode ser ressemantizado, mas não eliminado. A questão é que não se trata mais de identificação, que é um conceito restritivo atado a preceitos discursivos, mas de pertencimento, que é uma posição flexível e, no entanto, acomodável às mudanças das circunstâncias e, inclusive, à própria mudança de lugar. Dessa maneira se entende que um lugar possa ser ao mesmo tempo o próprio e outros mais.

No caso particular da arte produzida na América Latina ou como latino-americana, a reflexão acerca do lugar está ligada à da memória, mesmo que esta não apareça como objetivo expresso de um determinado projeto criativo.

Levando-se em conta que na base de toda estrutura poética a memória é o ingrediente de fundo, no continente este foi por décadas o grande tópico da produção artística e intelectual, questão que se explica por sua condição histórica.

Na América Latina, a reflexão sobre o que o passado significa no presente surge da necessidade — e isso de maneira espontânea —, a partir de distintas ocasiões, e não só por meio do diálogo estrito com a narrativa social ou a dificuldade de seu devir político. O contato com o labirinto criado pela fusão — muitas vezes inarticulada — de realidades obriga a entender tanto o originário como a complicada trama dos acontecimentos.

Como todos os países que trabalham para se libertar de diversos processos de colonização, para os latino-americanos o trauma central foi a perda e o descontrole da memória a que levaram à negação cultural e à destruição de suas tradições e crenças, mediante uma intensa e urgente tarefa de silenciamento e ideias impostas em todos os campos que permitem interpretar o mundo e o universo. Entre as múltiplas negações estão não apenas as construções culturais, mas também a própria paisagem e o entorno mais próximo, isso explica o fato de que a criação crítica tivesse procurado desentranhar, de várias maneiras, uma atmosfera própria através de diversos mecanismos, apesar de não existir uma programação para fazê-lo.

Não é acontextual então que entre os motivos centrais da reflexão de Daniel Senise estejam a memória, a expansão do tempo e do espaço, que em seu trabalho obrigam a sentir o infinito. Da mesma forma, é compreensível que o artista pense nestes temas em um sentido pessoal no qual não contam avaliações de ordem social, histórica ou política. Não existe formato algum capaz de precisar suficientemente quais são os domínios da memória, pois esta é, afinal, a matéria que compõe cada sensação, percepção, reflexão e concepção vital. São incontáveis as maneiras de se aproximar dela e de expressá-la.

No caso da obra de Daniel Senise, o artista pensou na matéria como uma voz autônoma e como expressão per se desde os primeiros trabalhos nos quais investigou imagens e processos que lhe permitiram revelar sua forma de perceber o mundo e suas questões.

O exemplo mais claro desse modo de operar é constituído pelos traços de movimentos infinitos feitos com a oxidação de pregos, um exercício mais direto desse pensamento. O desenho que o artista dispôs ao determinado percurso sobre a tela fez dele o elemento mesmo com sua própria oxidação. Depois de ocorrido esse fenômeno de tempo e de vida, a realidade como matéria foi retirada da obra para que ela fizesse de si mesma sua evocação.

Ausência, então, é um conceito chave na obra do artista, com o qual edifica um jogo de acesso às diferentes camadas da memória. Nesta obra, os pregos se fazem presentes como rastros, não como corpo, e seus vestígios fazem uma itinerância infinita, não apenas pelo movimento que propõem como desenho, mas pela atividade mesma do rastro impresso, cuja oxidação não se detém. Equivale a dizer que a memória é tratada neste trabalho como atualidade, como presente, e não como testemunho de um tempo passado. Na obra de Daniel Senise, o tempo é concebido como uma questão em ação, e em ação múltipla. Daí que as obras realizadas a partir de interconexões de impressões feitas em camadas sejam a negação de um êxtase do registro, como o é, também, a conversão dos distintos suportes impressos em estruturas ou em edificações totalmente estranhas à sua natureza de origem.

Por esse mesmo motivo, a inquietude de Daniel Senise desde que realizou o primeiro monotipo no piso de seu ateliê foi alterar a situação monolítica distinta, referida a outro lugar. Esta é outra forma de circulação infinita que a obra de Daniel Senise adota. Nela, o passado é sempre presente.

De fato, a primeira impressão não foi consequência de uma indagação de registro, mas um acidente que apresentou novas possibilidades de representar o material, quando a obra do artista ainda podia ser definida mais estritamente como pintura. Uma tela que preparava para usar em um trabalho aderiu com mais força ao solo do ateliê por um excesso de aplicação de tinta acrílica. A tinta traspassou a tela fina, provocando assim a aderência. A separação da tela trouxe então consigo camadas da história do espaço em que estava, e as mais visíveis foram os rastros do trabalho que Daniel Senise estava então desenvolvendo. Naquele momento, sua experimentação consistia em sobrepor superfícies de material, nas quais depois fazia extrações para deixar desta maneira traços de uma atividade distinta sobre a pintura. No entanto, essa primeira tela impressa, que recolheu os resíduos que haviam caído no chão durante a elaboração de vários exercícios, parecia também uma obra sua, como o próprio artista esclareceu em várias entrevistas.

Só encontra quem está procurando, e nesse sentido foi que aquele acaso desembocou em reflexões e concepções sobre a memória, a imagem e o espaço de crescente complexidade.

Enquanto experimentava a oxidação dos pregos e de outros sólidos metálicos, Daniel Senise também estudava, com suas pinturas, imagens icônicas da história da arte e da ilustração como representação e ausência, como formas de habitar o espaço e de se expressar nele em distintas ordens. A essas séries pertencem obras como Retrato da mãe do artista (1992. p.215), Despacho (1993, p. 220) e Casamento (1994. p.224), inspiradas na conhecida pintura do artista norte-americano James Whistler: Mountain e Cliff (1994, p.132-133), inspiradas na obra do pintor alemão Caspar David Friedrich, assim como Ela que não está (1994, p.126­131), inspirada no esquema de restauração por perda de material de um dos afrescos do pintor italiano Giotto, na capela Barci da Igreja da Santa Cruz, de Florença. O artista conheceu a imagem nos livros em que estudava história da arte e depois diretamente em uma viagem àquela cidade italiana, em 1994. O fato de tê-la estudado primeiro em um impresso no qual se manifestava a deterioração e o processo de restauração da obra gerou a ênfase na observação e reflexão que Daniel Senise fez do ausente nela.

Em especial neste último trabalho, a observação do artista se concentra naquilo que desapareceu, uma questão vital que encerra uma explicação do mundo e sem a qual é impossível decifrar um conteúdo ou uma mensagem. É uma reflexão muito semelhante a que faz o artista francês Marcel Duchamp na obra Tu manque qui (1918), a marca final de seu trabalho em pintura e o começo do desenvolvimento de sua reflexão sobre o mundo objetal. Em Tu manque qui, Duchamp representou apenas a sombra do cabide e com o título apontou sua ausência, para se referir, com esse ato, a uma falha da representação pictórica e inclusive fotográfica, que consiste em fornecer uma expressão acerca do real ao retrato de um fragmento aplanado, enquanto se mantêm ausentes a coisificação e a realidade viva e mutável do material.

Com essa lógica, em obras como as aqui mencionadas, o projeto de Daniel Senise já entrara em um tempo e um espaço metafísico, percepção que em seguida ele incrementa bastante por meio da austera construção de espaço e estruturas a partir das impressões tiradas dos pisos e pelo desaparecimento total em suas imagens de qualquer esquema do corpo humano.

Embora no começo tenham representado construções reais, esses espaços levaram o trabalho do artista a passar radicalmente ao terreno da reflexão abstrata, e isto em uma solução de todo pessoal. O que não está neles são muitas coisas: o lugar e a realidade de onde provêm os seres que os habitam e o interminável entorno em que se projetam, e o chamado ao infinito em que se sustentam. Com esses mecanismos, Daniel Senise leva a sonoridade e a importância do imenso mundo, que por força se distancia de qualquer proposta de representação, a uma instância de maior poder metafórico e poético.

Interpretei com insistência em outros estudos e textos que esse chamado ao infinito e a um tempo-espaço circular, instável e complexo na arte e no pensamento que amadureceu sob os esquemas do moderno e do contemporâneo na América Latina — ou no campo de ação latino–americano — tem uma relação direta com a libertação do tempo-espaço único, plano e quieto da fotografia. E também com o das importações discursivas de diferentes ordens: políticas, econômicas, sociais, artísticas e intelectuais em geral, que submeteram os Estados latino­americanos, em sua nascente história, a uma ordem rígida, central, monocular, na qual pareciam ter resolvido de muitas maneiras o problema de interpretação do real, a partir da compreensão do tempo, do espaço e da história, comparáveis às do plano fotográfico.

Em primeiro lugar, concebi-o desta maneira porque lembrei que no continente, na maioria dos casos, as academias de arte foram fundadas depois de a fotografia ter sido amplamente   experimentada. Esse fato pressupõe que desde o começo se contara com seu apoio para o treinamento em padrões rígidos da correta representação do real, alimentados por um neoclassicismo e romantismo que se pretendia aclimatar.

Isso implicou o achatamento e a simplificação da dificílima apreensão do real que havia sido trabalhada por séculos nas academias históricas, e também, em consequência, a destruição do exercício filosófico e de observação em que a realidade se compreende inabarcável e inapreensível e, por essa razão, sujeita a uma interpretação, através de códigos e símbolos como os do horizonte, da fuga, ou da estrutura geométrica etc.

Pelo contrário, a fotografia chega com essa abstração resoluta no interior de um aparato construído a partir da lógica cartesiana, na qual o mundo se ordena em um eixo matemático simétrico. A realidade que se observou então foi a da câmera, que faz um registro exclusivamente frontal e, além disso, fragmentado e compactado em um único plano, no qual o horizonte se transforma em linha reta e finita, apagando desta maneira a noção da circularidade do mesmo, e da mesma forma a do tempo­espaço.

México, Brasil e Cuba tiveram a sorte de ter fundado as primeiras academias da América Latina, em 1783 (México), 1818 (Cuba) e 1826 (Brasil). Este fato, apesar de ter propiciado uma vantagem no exercício da observação direta da realidade no que se refere ao que aconteceu em outros países, ocorreu, de qualquer maneira, por meio dos padrões neoclássicos estudados no novo mundo, fundamentalmente a partir de gravuras de escolas europeias. Isso quer dizer que além de não priorizar no estudo da imagem o livre exercício da observação e compreensão do próprio entorno, os primeiros desenvolvimentos das escolas de arte (exceto no México) aconteceram em paralelo às primeiras experimentações que deram lugar aos testes de fixação da imagem fotográfica na França. E também poucos anos depois do anúncio oficial do surgimento da fotografia (1839), meio que chegou de maneira surpreendentemente rápida ao continente, para se integrar com a mesma velocidade ao estudo da imagem nos ateliês de pintura e escultura.

Como complemento a essa situação do desconcerto acerca do que implica a apreensão do real, se soma o fato de que mais tarde aparece o cinema, integrando-se ao mesmo entendimento plano e fragmentado, mas agora em movimento, poucos anos depois de seus primeiros passos na Europa.

Como consequência desse processo, não é de se estranhar que quando teve início a assimilação dos trabalhos vanguardistas na América Latina — quando, na Europa, através das imagens do cubismo e do surrealismo estava sendo entendida a ruptura do tempo único e se desenvolvendo uma filosofia da simultaneidade — esse produto tenha sido acolhido no novo mundo de maneira plana e frontal e dentro da lógica estrutural do tempo linear e inerte da fotografia. Não era possível conceber no continente a transcendência do tempo único refutada desde o impressionismo sem que se tivesse especulado sobre a instabilidade do real e quando, pelo contrário, os avanços da fotografia, que era trabalhada como o principal apoio do entendimento da imagem na academia, afirmava a possibilidade de congelar o instante e, com ele, a imagem.

No século XX, a fotografia se transformou em texto que documenta e testemunha o real de maneira irrefutável, e por isso países como os latino-americanos não podiam tampouco renegar os discursos que lhes eram impostos a partir de fora sem fazer a revisão filosófica que a arte fez sobre o verídico e documentável da realidade no fotográfico. A emancipação filosófica em todos os campos deve ter sido por isso mesmo um trabalho simultâneo, em que cada um se alimentava dos avanços e progressos do outro para tecer algo realmente próprio.

Dessa forma, não se podia entender desde o começo qual era esse Tu manque qui de que falava Marcel Duchamp, nem qual a simultaneidade do tempo que os cubistas embutiam em uma única cena pictórica, como, tampouco, quais as vias de expansão bidimensional que levaram a pintura a sair da moldura até abordar o tempo-espaço da instalação, da ambientação e da performance. As primeiras adoções são por isso mesmo mais um exercício de contemporização da imagem a partir de um formalismo superficial. Esse exercício foi desempenhado, além do mais, na maioria dos casos, a partir de reproduções de obras da história de arte, o que, além de desvirtuar questões de formato, qualidade, cor, técnica e profundidade, reforçou a relação com a moldura e o ordenamento fotográfico.

Foi durante a manipulação prática dos discursos mais inovadores que se entendeu, pouco a pouco – enquanto se destituía a integridade dos padrões europeus —, que o tempo e o espaço, como aquilo que os habita, são assuntos infinitos que a finitude de nenhum suporte ou concepção pode conter de nenhuma outra maneira a não ser por meio da poética. Isso aconteceu, como é lógico entender, em relação à preocupação de compreender e contribuir aos temas do contexto.

Dessa compreensão expansiva da forma e dos suportes nasceram obras e processos que não são mais aclimatados, mas gerados em estruturas de pensamento diferentes, como as de Armando Reverón, Lygia Clark e Hélio Oiticica, por exemplo. Armando Reverón dissolveu a imagem em luz e transparência e depois erigiu um mundo objetal particular, em que a simultaneidade e a velocidade são entendidas a partir de suas próprias leis. Por sua vez, Lygia Clark e Hélio Oiticica insistiram na importância da linguagem estrutural até dissolver a matéria em comportamento ou na atmosfera do ambiente.

Não são poucos os exemplos que podem ser mencionados a respeito de projetos que rompem os limites do suporte angular e da estrutura centralista de eixo simétrico. Os mencionados podem ser simplesmente alguns dos mais notáveis entre os pioneiros. O certo é que o trabalho fortalecido pelos artistas latino-americanos neste sentido está conformado no presente por um corpo bastante destacado de obras que, como as de Daniel Senise, não são mais concebidas por contradição e em oposição às concepções de outros, mas na integração das culturas e das propostas mais plurais, sem que esse procedimento as descontextualize. Em consequência, essas posturas também devem ser lidas a partir de fronteiras de percepção muito mais amplas e diversificadas do que as da literalidade e da leitura política e social a que foram forçadas nos primeiros passos.

Na poética de Daniel Senise se compreende que o ausente na representação da realidade é o mundo que está fora do horizonte finito, a vida que não se pode formular nele, que é inefável, e da qual, no entanto, o artista consegue dar um aviso espantoso. O interessante e inovador em seu caso foi ter assumido o desafio de incluir esse entendimento no formato da pintura, demonstrando desta maneira a vitalidade de um meio que se considerou superado em incontáveis debates ao longo do século XX.

A pintura já se enriquecera de grande quantidade de experimentações ao longo da primeira metade do século XX com a colagem e a ensamblagem, com o desenho e a administração de um espaço metafísico, de maneira que não foi com esta comunicação de meios que Daniel Senise gerou outras possibilidades. Foi com o que fez com a imagem e com o tempo nesses meios e através da forma como os fez expressar uma simultaneidade distinta, que é atual.

No presente, a representação do mundo chegou a distâncias que teriam sido inimagináveis de alcançar no espaço cósmico; atingiu, também, dimensões subatômicas, que afirmam, cada vez com mais elementos, um infinito que se estende para fora e para dentro de cada partícula da existência e que em seu movimento constante gera uma quantidade incalculável de conexões de toda ordem. A palavra para definir esse acontecimento múltiplo é “vínculo”, e vínculo entre uma quantidade inimaginável de dimensões, das quais não havia notícia quando as vanguardas abordaram a simultaneidade no espaço e no tempo, paralelamente à formulação da teoria da relatividade.

É por estas razões que a simultaneidade a que se refere o trabalho de Daniel Senise é outra. E o é também porque a elaboração geométrica com a qual pôde aproximar dela nasce de conclusões distintas.

A construção geométrica que a modernidade trouxe para a América Latina, em diferentes campos, é resultado de um continuum investigativo ao qual foram se somando achados e respostas sobre as dimensões do homem e seu universo. Dessas dimensões nasceram, progressivamente, abstrações das quais resultaram muitos dos aparatos físicos e conceituais que a América Latina teve que desconstruir para entendê-los e reconstruí-los de outras maneiras, de acordo com suas circunstâncias e necessidades. Pelo mesmo, e também em muitos casos, com outras funções. Isso porque a desconstrução foi feita de moda empírico, sem conhecimento da lógica interna dos sistemas que analisa, fato que desviou os estudos por rotas distintas, que sempre aportam outros olhares e objetos de investigação.

Na obra de Daniel Senise, por exemplo, na indagação autodidata que o artista fez sobre a imagem e sua geometria, houve uma redescoberta da perspectiva, em um momento da história em que não é possível organizar uma composição em nenhum campo de acordo com as perspectivas centrais ou simples, e em que, por muito tempo, esteve problematizada a representação figurativa na pintura. Daí que em seu trabalho abstrato as projeções dirijam o espectador a todos os ângulos, incluindo o que ele próprio ocupa e inserindo-o desta maneira, de repente, em um grande e acelerado vazio.

A versatilidade com que o artista ofereceu concepções distintas a um mesmo repertório de recursos prova não apenas que nenhuma maneira ou técnica se esgota quando é redescoberta constantemente em outro território, mas que o mesmo pode ser feito com a base de conhecimentos herdados dos clássicos. Essas bases alimentam o drama dos espaços de Daniel Senise, que não tem ressonância com os conflitos da América Latina, e por consequência não é sensível a eles, mas sim à profundidade ilimitada da poesia.

Em seu incessante diálogo com a história da arte, Senise conseguiu oferecer leituras contemporâneas a estruturas que deixaram de sê-­lo e, no entanto, transportaram no tempo seus dados essenciais. Uma qualidade pictórica e de desenho como a que têm as obras realizadas com papéis oxidados pela passagem dos anos é resultado do olhar transcendente que o artista fez do suporte e da matéria como memória, mas é, também, constância de uma fina sensibilidade e cultura em relação às possibilidades da pintura e do desenho. Dessa maneira se entende que, na insistência de um mesmo argumento observado a partir de ângulos muito diversos, Daniel Senise tenha conquistado uma clareza diamantina acerca do significado do tempo. E daí, ter podido usar sua voz para a expressão artística, entendendo a carga que deixa nos distintos corpos, sem ser literal nem simplista em relação a ela.

Os papéis oxidados saíram dos próprios livros em que o artista estudou imagens da história da arte. Os textos que em certas ocasiões deixa visíveis são identificações de obras cujas estampas estavam aderidas e retirou a fim de usar o papel. Isso permite entender o olhar múltiplo com que o artista lê uma mesma informação. Enquanto estuda a história da arte (essencialmente da pintura), o faz também com a do suporte em que ela se imprime e com as possibilidades que tem esse suporte de ser superfície de outra argumentação sobre arte, através da pintura. É outra maneira de conectar o princípio e o fim, de fazer circulações infinitas com o tempo e a matéria.

Quando, em 2006, Daniel Senise volta para a pintura aplicada com pincel, depois desses processos, não faz uma pintura íntegra em um plano. Ou seja, não faz uma pintura de tempo linear, mas sim o contrário — traz até a tradicional maneira de aplicar a cor, o ensinamento da fragmentação e a comunicação de tempos e espaços que lhe deixaram os trabalhos de impressão em pisos e de composição pictórica segundo gradações de oxidação dos papéis.

Com essa lógica, o artista submete a recortes —agora reticulares — a pintura hiperrealista que faz a partir das cores do piso de sua habitação, que depois recompõe em jogos cromáticos, para traçar, em escala natural, o corredor que percorre diariamente conectando as distintas estâncias de seu próprio espaço. Neste caso, o tempo da pintura se mescla para falar do mais íntimo da memória, que também é impreciso e inapreensível, embora as medidas e escalas materiais sejam transcritas. O lugar absolutamente próprio inexiste; nele estão, irremediavelmente, muitos outros, desde os mais próximos até aqueles a respeito dos quais se poderia chegar a dizer que já se apagaram da memória.

Os nomes que os aportes que se estruturaram nestes processos poderiam receber são distintos daqueles com os quais naturalmente foram batizadas as diferentes tendências criativas no século XX, mas sobre estes novos nomes ainda não há nada proposto. A arte latino-americana enfrenta, portanto, um problema de nominalidade, o que, como consequência, repercute em um nome único que acolhe o enorme repertório de processos que ela inclui.

Tanto a paisagem como a performance e as interpretações e acomodações do low tech na América Latina são chamadas de “arte latino-americana”. Dessa maneira, nesse oceano vastíssimo de olhares e interpretações, favoreceu-se tradicionalmente o que se pode vincular com maior facilidade a um entendimento redutor de América Latina, com a consequente perda interpretativa e filosófica que pressupõe deixar de entender, entre esses processos, resultados tão originais como aqueles a que leva a obra de Daniel Senise. Apesar de seu diálogo criativo se ter fortalecido com a pintura alemã, em especial com a de Markus Lüpertz e Sigmar Polke, assim como com a produção artística norte-americana durante os anos em que viveu em Nova York, é simplificador deixar de entender o decisivo diálogo que seu olhar estabelece com a luz, com a paisagem e com os processos intelectuais e criativos de seu lugar de origem.

Obras como as de Daniel Senise, que não traçam os limites das considerações de que se nutrem, não apenas porque são múltiplas, mas porque se submetem ao ritmo das observações de seu tempo em um sentido muito amplo, alcançam uma universalidade que torna o lugar de onde provêm distinto, questão que, em geral, marca o início de novas narrativas e de outras formas de reconhecimento.

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