Daniel Senise

O chão da oficina

Alexandre Mello 

Textos publicados em Daniel Senise. The Piano Factory, Andrea Jakobsson Estúdio,  Rio de Janeiro, em 2002

A prática de Daniel Senise abre-se a um vasto campo de experiências e evocações — materiais e imagéticas — que lhe permitem lidar, de um modo descomplexado e criativo, com as mais variadas técnicas e tradições, e criar um universo próprio do qual emergem valores plásticos poéticos que não são redutíveis a classificações monolíticas nem a revisitações escolares de tendências consagradas da história da arte, mais recente ou mais antiga. Por isso a nossa abordagem ao trabalho de Daniel Senise não parte de categorias classificatórias, em termos de tendências estéticas ou doutrinárias, mas sim de uma seleção de tópicos temáticos, identificados a partir dos processos materiais de trabalho ou dos efeitos visuais que deles resultam.

Começamos pelo tema da paisagem já que entendemos que muitas das obras de Daniel Senise nos desafiam no sentido de as olharmos como paisagens, considerando a paisagem não apenas como representação, mas como materialidade concreta e incorporada.

O QUE É UMA PAISAGEM?

Não será necessário demonstrar aqui a importância e o papel da paisagem, sua evolução e vicissitudes, ao longo da história da arte. Mais curioso é constatar o modo como o tema da paisagem se tem continuado a manifestar, ainda que de uma forma mais lateral ou mais discreta, no contexto de muitas das tendências mais marcantes, e por vezes mais radicais, das últimas décadas. Veja-se o modo como a paisagem é, ainda, a referência fundamental para abordar a “land art” e trabalhos como, por exemplo, o de Richard Long. Sobretudo importa assinalar o modo como nos últimos anos o regresso da paisagem ou o regresso à paisagem se tem manifestado como problemática central na obra de múltiplos autores de diferentes orientações estéticas.

Julgamos que a persistência da paisagem e a diversidade das formas de que ela se tem revestido no contexto da arte contemporânea, se relaciona com a multidimensionalidade, a versatilidade e a plasticidade do tema. A paisagem, enquanto tema, apresenta uma grande diversidade de aspectos e aproximações possíveis e produtivas a partir de um ponto de vista artístico.

A este respeito distinguiríamos três dimensões da paisagem. A paisagem como ideia, que nos remete para a ideia de natureza. A paisagem como experiência, que nos remete para toda a gama de sensações, sentimentos e emoções que resultam da experiência vivida do confronto físico. A paisagem como imagem, que nos remete para um filão particular da história dos processos de representação do real.

Vejamos agora de que modo estas diferentes dimensões da paisagem podem manifestar a sua produtividade na atualidade da arte contemporânea.

A paisagem, enquanto representante da ideia de natureza, aproveita sobretudo a trabalhos em que a vocação sociológica é predominante. As preocupações ecológicas tendem a tornar-se fundamentais neste tipo de investigações, surgindo de alguma maneira como uma atualização histórica da problemática crítica mais tradicional da oposição entre natureza e sociedade. Mas a perspectiva crítica e ecológica não esgota as possibilidades de exploração artística da ideia de natureza. Podemos considerar que mesmo uma atitude mais nostálgica ou contemplativa possui uma eficácia distanciadora perceptível e pertinente em relação ao mundo das imagens mediáticas que nos rodeiam.

Enquanto experiência emocional, perspectivada na via da exploração da noção do sublime, a fruição de uma paisagem é uma experiência cuja intensidade não é susceptível de ser apropriada nem reproduzida. Nesta medida, qualquer tentativa plástica de evocar o êxtase experimentado diante de uma paisagem está inevitavelmente condenada a falhar, porque um tal estado não pode, por definição, ser reproduzido. Por isso é preciso sempre, de novo, recomeçar. Persistir no desejo da impossível evocação.

No final do percurso, porque é de pintura que se trata, será sempre da paisagem enquanto imagem que teremos de falar. Ocorre então perguntar se a pintura, com algum deliberado anacronismo ou alguma inocência mística, é ou não, ainda, capaz de nos perturbar ou surpreender, capaz de nos fazer pensar ou recordar uma paisagem, idealmente vivida ou realmente idealizada.

É, portanto, a questão da relação entre a paisagem como experiência e a paisagem como imagem, em pintura, que nos interessa aqui aprofundar no contexto da análise da obra de Daniel Senise.

Adiantaríamos, desde já, a hipótese segundo a qual Senise procura ultrapassar as limitações da evocação da paisagem apenas enquanto imagem, através de uma incorporação física de materiais e de uma incorporação simbólica de sinais. Trata-se de colocar o observador dentro da paisagem.

Vejam-se, por exemplo, Sem Título (1993), esmalte sintético e óxido de ferro sobre tela ou Paisagem com Levitação (1995), acrílica, pó de ferro e laca sobre cretone. As texturas enriquecidas pelo forro induzem a um apelo sensual, físico, um apelo ao tacto. A figura da menina, na sua disponibilidade silenciosa, oferece-se ao observador como intermediária capaz de lhe assegurar a entrada na paisagem. Senise procura, por vias paralelas e complementares à representação da imagem de uma paisagem, em sentido estrito, despertar no observador as memórias da sua própria experiência pessoal da paisagem.

O que é, então, uma paisagem?

É muito difícil descrever uma paisagem. É impossível fazê-lo rigorosamente. Para responder à pergunta temos de começar por recorrer à memória da nossa experiência pessoal, vivida ou sonhada.

Na minha memória, a noção de paisagem é indissociável da ideia de viagem. De que é que se compõe uma viagem ou um conjunto de viagens? Falo das viagens que se escolhem ou se deixam acontecer-nos como exercício aristocrático de antigos e sábios modos de viver, abandono a uma rêverie literária: exaltação emotiva e formação moral.

Admitamos que acontecem momentos particularmente conseguidos e que estes estão associados a rios, montanhas, árvores, bosques, céus, mar, neve, escuridão, luz, folhas de árvores, ribeiros, luz, neve, água, terra. A tudo isto e aos correspondentes momentos está associado, em termos de experiência profunda, um sentimento de impotência — que vai desde o deslumbramento até à irritação — devido à impossibilidade de apropriarmos — dominar e reter— a estrutura e modo de ser de algo que, manifestando-se totalmente fora de nós mesmos, nos mobiliza totalmente dentro de nós mesmos.

Esta explicação veio a propósito de viagens, mas poderia vir a propósito de quase todas as circunstâncias de uma vida. Sempre que essa vida for praticada do ponto de vista da atenção emocionada ou do escrúpulo sensível.

São momentos de duração suspensa. São mais virulentos quando são “momentos-paisagem” porque nos permanecem mais irremediavelmente exteriores. E dessa exterioridade magoada, da denegação dessa exterioridade, que se constrói uma memória — uma autobiografia seletiva. Uma autobiografia onde podemos manter sempre, e para sempre, presentes esses momentos de que nunca nos apropriamos.

Falamos de uma mesma circunstância — os “momentos-paisagem” — considerada em duas temporalidades da sua existência: o acontecer e a memória. Importa agora apurar de que forma é que estes momentos se podem tornar em circunstâncias da pintura. A pintura não pode registrar para a eternidade o que passou ou o que se viu num desses perfeitos “momentos-paisagem”: porque o que de mais decisivo neles se passou foi o não poder ser registrado, isto é, integrado num código, como seria o da pintura. A pintura não pode exprimir a experiência subjetiva ou a memória indelével de um momento porque, quer a  subjetividade quer a memória que se prezem, são imateriais.

O que a pintura pode fazer, ou seja, o que fazer as pinturas pode ser, é, com os meios disponíveis, criar conjuntos capazes de eventualmente funcionarem de um modo semelhante ao modo como funciona o conjunto de elementos que provocam os “momentos-paisagem”. Os meios disponíveis são tintas de várias cores, madeiras e outros materiais que contrastem texturas e graus de corrosão, pinceladas, instrumentos de raspagem, maneiras de fazer efeitos de cor e de luz, sensibilidade tátil.

Nunca se consegue pintar uma paisagem, nem um momento, mas às vezes consegue-se pintar uma pintura. É um ofício humilde e pretensioso. Produzir materialmente algo impossível de conceber. A humildade consiste em fazer disso um trabalho. Se esse trabalho for praticado do ponto de vista da atenção emocionada ou do escrúpulo sensível acontecerão momentos de duração suspensa, “momentos-pintura”. Mais ou menos partilháveis entre pintor e observador; isso é questão a ver mais tarde. E os “momentos ­pintura” passarão a fazer parte de uma autobiografia seletiva, juntamente com tudo aquilo que tenha sido vivido de uma forma rigorosa.

Olhemos para O Beijo do Elo Perdido (1991). Numa paisagem árida e fria duas formas encontram-se e entrelaçam-­se como se fossem corpos, rostos, seres vivos. Seres quentes, vocacionados para a entrega e o calor. Na superfície da pintura surpreendemos estas formas que para nós desenham um desses perfeitos momentos de duração suspensa. É um “momento-pintura” que na nossa memória poderá talvez despertar o eco de um outro momento, em que um acontecimento eclodiu numa paisagem até então neutra e a tornou única. Um daqueles momentos em que não sabemos o que aconteceu, mas temos a certeza que aconteceu alguma coisa incomparável.

O CHÃO DA OFICINA

Quando eu era criança e o meu pai me levava a visitar a enorme fábrica de montagem de autocarros onde trabalhava, a minha primeira sensação era o susto provocado pelo som brutal de centenas de máquinas a serrar, martelar e soldar ao mesmo tempo, tendo como música de fundo o entrechocar de infinitas chapas de ferro. Ultrapassado o primeiro impacto do pavor, uma das coisas que mais me fascinavam era a diversidade das texturas que cobriam o chão e as bancadas de cada uma das salas de trabalho.

Numa sala era um chão de cimento frio como chumbo que se oferecia como um bolo negro polvilhado de pó ruivo de ferrugem e de pó branco de um qualquer talco protetor. Tinha que esperar o momento em que ninguém estivesse a olhar para fazer desenhos naquele chão tão voluptuosamente tentador e depois disfarçar a mão no bolso das calças tentando limpar no lenço as manchas e os cheiros que ficariam nos dedos até o dia seguinte.

Numa outra sala, eram mesas cobertas de aparas de madeira dos mais barrocos formatos, que se encaracolavam e espetavam em todas as direções, e iam caindo em cascata para o chão onde eram recebidas por um colchão de fios entrançados de todas as cores, empapados em óleo negro e pegajoso, quase seco. A este monte de fios têxteis encardidos, que todos os homens traziam pendurados dos bolsos dos fatos-macacos, chamava-se “desperdício”, palavra maravilhosa para um maravilhoso conceito: “desperdício” é o que serve para receber, absorver e limpar todas as sujidades. Era possível mexer nas aparas mais limpas de madeira para fazer pequenas construções. Mas todo o cuidado era pouco para evitar que alguma aresta mais viva atravessasse a fina pele dos dedos, com consequências sangrentas. Ou que algum resto de óleo perdido deixasse a nódoa indelével que depois teria de ser esfregada com aguarrás: mais cheiros intensos, mais marcas que ficariam na pele durante vários dias.

A sala seguinte era a sala da pintura. Era difícil resistir à imensidade das latas de tinta abertas e disponíveis, recheadas de pudins líquidos das cores mais tentadoras. Tintas que escorriam, abundantes, para os tabuleiros em que eram combinadas e misturadas, tintas que caíam para o chão e, depois de secas ou quase secas, podiam ser arrancadas e moldadas como se fossem bocadinhos de plasticina. Tintas que salpicavam as roupas, as mãos, as caras, deixando por todo lado marcas de vida.

As marcas do mundo vivo da imensa oficina onde o meu pai trabalhava.

Sabe sempre bem imaginar que os pintores trabalhem em sítios como estes. Mesmo quando nos referimos a pintores daqueles que pintam pinturas que são obras de arte e não apenas a operários pintores que pintam, por exemplo, autocarros. É assim que eu imagino o estúdio de trabalho de Daniel Senise.

“A tela ou o tecido de algodão delgados são preparados e cobertos com pigmento, em seguida estendidos, ainda úmidos, sobre o piso do ateliê. Ao serem descolados do piso, retêm em sua superfície uma estampa das marcas, tal como o sudário, referência literal ou metafórica tão frequente na obra de Senise. Quando erguidos, a tela ou o tecido incorporam não apenas a poeira, as lascas e as manchas do piso, mas também zonas vazias de superfícies perdidas e os resquícios de obras anteriores submetidas ao mesmo procedimento. A tela é então fixada à parede e, em certos casos, retrabalhada da mesma maneira.” (Dawn Ades, in “Daniel Senise: Vestígios”, no livro Daniel Senise — Ela que Não Está, Cosac & Naif, São Paulo,1998).

Isto é ainda um trabalho de construção de paisagens. Paisagens urbanas, fabris. Paisagens concretas, físicas, feitas à mão por mãos de homens. Quase temos vontade de lhes chamar paisagens proletárias, se quisermos usar uma palavra que já quase não tem uso nem sentido. Em paisagens como estas é a própria materialidade das texturas que traz as recordações, os afetos, os sortilégios, e todas as outras coisas mais ou menos poéticas que queiramos associar às coisas que se fazem com as mãos, como é o caso das carícias. Nos seus trabalhos mais recentes, realizados ao longo dos dois últimos anos, Daniel Senise toma como ponto de partida precisamente imagens do chão de diferentes espaços. As imagens dos chãos são registradas em monotipias e depois utilizadas, através de colagens e justaposições, para compor quadros que, por sua vez, configuram representações de diferentes espaços interiores, designadamente, imagens dos próprios espaços de exposição em que as obras se apresentam. Noutros casos, os espaços interiores representados são citações de pinturas antigas as quais foram subtraídas as personagens.

Vejamos alguns exemplos. Imagens do chão de uma fábrica de madeira em Connecticut acompanham, por exemplo, a representação de um espaço de uma pintura de De Hooch. Imagens do chão de uma escola de arte em Nova York reconstituem os espaços de diversas salas de museus. Imagens do chão do ateliê do artista em Nova York servem para representar esse mesmo ateliê. O mesmo método é seguido nas telas destinadas à exposição nas Cavalariças do Parque Lage, no Rio de Janeiro, em que imagens do chão, tal como estava antes da recuperação do edifício, são utilizadas para representar as salas onde as próprias telas são expostas. Em todos estes casos, trata-se de reforçar os efeitos de inclusão do observador no interior do espaço representado, levando às últimas consequências o jogo de ilusões, equívocos e correspondências, entre espaço real, espaço representado e espaço recordado ou imaginado.

O SUOR DO TEMPO

De quem é o rosto cuja marca terá sido registrada, e permanece há muito muito tempo visível, no famoso Sudário chamado sagrado? Há quem diga que aquelas marcas são as marcas do rosto de Cristo, o que não adianta quase nada, porque a seguir teríamos de perguntar quem é Cristo. E esta é uma pergunta que já não pode dar lugar a uma resposta, mas apenas a uma infinita sequência de observações e especulações que, sendo fascinantes, não são matéria de que aqui possamos ocupar-nos. O que importa reter é que estamos perante perguntas que não podem ter uma resposta definitiva e que nem por isso deixaram de ser objeto de interesse ou até paixão. O que a respeito de assuntos como estes se pode dizer é, por natureza, infinito. Esta é também a natureza das obras de arte. São infinitas as perguntas que a seu respeito se pode fazer e as respostas que a seu respeito (não) se pode dar. Daqui resulta a infinita variedade dos discursos sobre arte.

Mas não será isto absurdo? Para que serve uma coisa a respeito da qual tudo se pode dizer mas nunca se pode dizer nada de definitivo? Uma coisa a respeito da qual não se pode dizer nada que se aproxime daquilo que antigamente se chamava a verdade.

Estamos a falar de coisas que tinham um sentido quando foram feitas. Vão tendo, depois, outros sentidos, cada vez que são vistas ou recordadas. Ganham, até, novos sentidos mesmo quando já ninguém sabe, sequer, como ou quando foram feitas. E assim interminavelmente, passando por momentos em que não têm sentido nenhum, porque ninguém se lembra de pensar a respeito delas o que quer que seja. Por que não se acaba com estas conversas infindáveis e as coisas que as alimentam? Por que não se deitam fora esses panos sujos não se sabe de quê?

Porque eles são os depositários e as testemunhas do tempo. O tempo é o sono de Deus e é tudo o que nós, desamparados humanos, temos para viver.

Vejamos a série de trabalhos Ela que Não Está, baseados na forma criada pela remoção de intervenções sobrepostas ao afresco dedicado por Giotto à morte de São Francisco, na capela Bardi de Santa Croce, Florença. O que é citado não é a imagem, mas o que lhe falta. Talvez porque é o que falta, o que se perdeu, aquilo que melhor dá conta da irreversível passagem do tempo. Se nos restringirmos a uma análise mais superficial deste conjunto de trabalhos, podemos afirmar que Daniel Senise se dedica a revisitar a história da pintura a partir de uma informação historiográfica mais ou menos erudita. A conjugação entre uma lógica de citação/apropriação e uma estratégia de subversão/inversão de valores — aquilo que se retém não é a imagem, mas o vazio que assinala o que dela se perdeu — permite identificar uma postura crítica e um trabalho de desconstrução da representação e da imagética tradicionais e consagradas. Tudo isto está presente no trabalho do autor e esta hipótese de leitura é, evidentemente, plausível.

No entanto, julgamos indispensável alargar o nosso horizonte problemático, à medida que o próprio autor alarga, de uma forma abrangente e generosa, o seu campo de referências e de experimentação. Se virmos, por exemplo, o conjunto de trabalhos realizados a partir de Retrato da Mãe do Artista, de Whistler, constatamos que, mais importante do que o conteúdo da citação, propriamente dito, é o jogo de composição que ela permite, um jogo de simetrias que se desenvolve em diferentes direções e dá origem a múltiplos exercícios lúdicos e oníricos: oposições entre verso e reverso; uma dupla silhueta que é também uma taça; a   reversibilidade de funções entre fundos e formas: uma imagem que, num momento, parece emergir para nos propor uma figura e, logo a seguir, volta a imergir para diante de nós estender uma paisagem.

Uma aura de suor num pano muito velho é talvez o máximo a que podemos aspirar como símbolo de uma idéia e de uma história de humanidade que nos ajude a lidar com a precariedade humana do nosso tempo: que é simultaneamente este tempo histórico em que todos vivemos e o tempo de vida de cada um de nós. A pintura é uma das formas de registrar a marca do suor do tempo. Por isso se fala de aura.

LISBOA, 2001

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