Daniel Senise

Os cadernos de Daniel Senise: “Um sótão de objetos pessoais”

Cecília de Almeida Salles

Texto sobre o artista publicado em francês na seção Desafios: “A crítica genética no Brasil”, na revista Genesis 18, 2002- Editions Jean-Michel Place 

 

Tive nas mãos dezessete cadernos produzidos pelo artista Daniel Senise1 de 1988 a 1999, são suportes móveis para todos os tipos de registros. Raramente são datados, mas é óbvio que não são organizados cronologicamente; eles são usados ​​em vários lugares. Aparentemente, o artista leva um caderno nas suas viagens, por exemplo, e faz anotações assistemáticas ao longo dos dias. Como Klee disse de seus diários, os cadernos de Senise são obras do tempo.

São cadernos de várias dimensões (30 x 22 cm, 22 x 14 cm, 14 x 10 cm), com capa dura. A aparência sólida é uma das justificativas do artista para chamar esse espaço de escrita de “registro de livros”. A natureza das anotações confirma a denominação: Senise diz que a ideia de livros difere da dos cadernos ou livretes pela solidez, em comparação com anotações mais perecíveis que se perdem facilmente.

Os cadernos do artista guardam mais do que anotações, mais do que vestígios do nascimento das obras. Estabelecem uma rede de relações bastante complexas com as pinturas dele. Essas relações nos afastam de uma visão linear do ato criativo. Tampouco constituem insights exaltantes e definitivos, que seriam então concretizados nas telas. As anotações se disseminam pelas telas ao longo do tempo e são usadas de várias maneiras. Os cadernos abrigam grande parte do tempo criativo de Senise – um tempo de amadurecimento feito de seleções, tomadas de decisão e elaboração em vários níveis e momentos. As anotações são marcadas por feedbacks obstinados, uma característica que se repete em muitos momentos do ato criativo. O vaivém peculiar ao artista, e que o faz tomar notas, refletir sobre o que foi anotado, voltar aos registros e recomeçar, é o objeto deste estudo, inspirado na semiótica de Peirce2.

Ao ler e olhar o último caderno, uma anotação me surpreendeu: falava da concepção da pintura como sendo “um fato sem testemunha”. Mas já tinha uma testemunha. Pelo menos parte desse projeto acabava de se tornar cúmplice.

Os vestígios deixados nas anotações indicavam certas modalidades de funcionamento do pensamento criativo da artista. Nas outras páginas dos cadernos que folheei, começaram a estabelecer-se ligações entre os gestos do pensamento e os da mão do artista: os fragmentos aparentes ganhavam uma unidade ao serem reunidos, e assim, certas recorrências eram observadas nos índices do modo de ação do pintor, e surgiam então alguns dos princípios que sustentam a produção de suas obras.

PALAVRAS E IMAGENS

Senise usa o espaço de estocagem para fazer várias reflexões e preservar informações sobre o que capta do mundo ao seu redor, por meio de anotações verbais e visuais. Assim, encontramos lembranças, sonhos, pensamentos sobre arte, discussões sobre o ato criativo, reflexões sobre a pintura, debates sobre títulos de obras, experimentação de imagens, questionamentos sobre projetos e obras já expostas. Ao longo da leitura, os cadernos vão se revelando aos poucos como formas de ligação entre a obra, o mundo ao redor do artista e seus gestos criativos.

A pintura, enquanto processo, sempre chamou a atenção da crítica à obra deste artista. Seus trabalhos, que não são pintados mas construídos (Gabriel Pérez-Barreiro, 1998), manifestam uma densidade física e temática nas elaborações intensas da superfície. As telas de Senise exibem um processo criativo feito a partir da adição de objetos e estratos que, interferindo uns nos outros, sustentam sua textura marcada pela busca incessante por novos materiais. As próprias anotações de Senise indicam a importância que ele dá à “fisicalidade da pintura”, que envolve processos de exploração das “propriedades físicas do quadro” e da “discussão da superfície” da tela.

A leitura dos cadernos do artista, por outro lado, desnuda um processo particular no qual camadas de um pensamento criativo em ação engrossam a textura de suas telas.

IMAGENS PROVISÓRIAS

Um olhar mais atento aos detalhes desses cadernos revela uma profusão de imagens em um estado transitório. Usamos aqui “imagens” no sentido de esboços figurativos – de figuras que poderão fazer parte de futuras pinturas, que se tornarão um dos elementos pictóricos (ver fig. 1.2 e 3).

Os cadernos, principalmente no campo visual, registram o que ainda está provisório. São traços frágeis – sem as preocupações gráficas que caracterizam as formas de comunicação interpessoal – que mostram uma série de figuras sempre desenhadas como possibilidades a serem testadas. São hipóteses plásticas ainda pouco vigorosas, como as linhas que as representam, que aguardam futuras avaliações por parte do artista. Em muitas páginas dos cadernos paira a dúvida e a incerteza: daí a definição dos cadernos como o espaço do “talvez”. De anotações como: “Talvez não usar toda a tela” e “Usar cor terra plena. Mancha out-line. Talvez no elefante ”(ver fig. 4), confirmam esta sensação.

É interessante observar que as anotações verbais referem-se a indicações para futuras pinturas, o que mostra claramente que a elaboração plástica encontra sua plenitude apenas na própria tela. Os cadernos não são um espaço de pintura propriamente dita, isto é, da materialidade pictórica, nem da sua preparação. Talvez seja por isso que a linguagem visual dos cadernos está envolta no transitório: nada está realmente pintura ainda, mas tudo poderá se tornar pintura.

Do ponto de vista da semiótica, nos deparamos com a indeterminação e a imprecisão que caracterizam o signo e que são indissociáveis ​​de sua continuidade. Peirce nos diz que “um signo é objetivamente vago quando, deixando a interpretação mais ou menos indeterminada, reserva para algum outro signo ou outra experiência possível a função de completar a indeterminação” (CP 4.505).

Discutiremos mais detalhadamente o movimento do signo ou semiosis, mas o que mais nos interessa aqui é o princípio da continuidade do signo, determinado por sua imprecisão intrínseca que leva a novos signos na busca de uma maior precisão: “onde quer que o grau ou qualquer outra possibilidade de variação contínua permanece, a precisão absoluta é impossível”, diz Peirce (CP 5.506).

O caráter transitório das imagens de Senise expressa exatamente a imprecisão e indeterminação do signo, e os cadernos parecem ser o campo de trabalho dessa busca de precisão. 

Imagens não são obras, mas podem se tornar obras, em um processo que inclui uma série de eventos que serão considerados posteriormente. Olhar a obra de arte, nessa perspectiva, permite um diálogo com as ciências que falam de verdades inseridas na continuidade de seu processo de pesquisa, portanto, nem absolutas nem definitivas.

PROJETO POÉTICO

Nas anotações verbais há momentos de construção do pensamento de um artista em plena atividade criativa – um artista em construção. As dúvidas, aqui, são menos claras e abrem espaço para uma superposição de reflexões sobre arte e arte contemporânea mais especificamente, e sobre sua própria pintura. As reflexões oferecem um suporte “teórico” às discussões que as pinturas suscitam. Nesses momentos, o pintor faz pleno uso da palavra falada, muitas vezes preocupado com a forma como seus pensamentos se expressam, o que se evidencia, por exemplo, por algumas rasuras em busca de palavras mais adequadas. Percebemos que nas reflexões verbais, português e inglês são misturados, muitas vezes sem critérios aparentes. Imagem e fala se complementam – sem qualquer hierarquia – e contribuem para a formação de um universo conceitual singular. Os cadernos dão origem à construção e sistematização do projeto poético que, de certa forma, dá um direcionamento a todas as obras do artista.

Falamos acima do movimento do signo, com particular ênfase na lógica da onda intrínseca, na visão do processo; com o projeto poético da artista, abordamos outro aspecto da semiosis.

O movimento do signo é um processo “com tendência” (processo de causa final em termos peirceanos) sem predeterminação de objetivos. Este conceito de processo “com tendência”, portanto, não inclui a perspectiva teleológica baseada na ideia de lógica implacável e de progresso linear, contra a qual Almuth Grésillon nos alerta (1994, p. 137). Também concordo com Almuth Grésillon (1994, p. 138) quando afirma que “o olhar teleológico perverte a interpretação, torna-a cega para o acidente, para a perda, para o estado de suspensão, para abrir alternativas, enfim, para todas aquelas formas de escrita que se afastam da linha reta. Ele bloqueia literalmente a visão daqueles que buscam entender algo no tempo presente da invenção”.

O gesto criativo, em Senise, apresenta-se assim como um movimento com tendências que atuam como direções vagas para orientar a construção das obras. O artista, impulsionado a superar desafios, vai em busca de sua satisfação, de sua necessidade. A realização de seus desejos o leva à ação (processo de causa física), ou seja, à realização da obra. O trabalho caminha para um discernimento mais claro do que se quer desenvolver. A criação é, portanto, um projeto vago e dinâmico.

A tendência se apresenta como um condutor maleável. Esse movimento dialético entre direção e incerteza gera o trabalho, aciona o ato da criação e o caracteriza como uma busca por algo a ser descoberto – uma aventura na direção do quase desconhecido.

As reflexões de Senise, em seus cadernos, se relacionam exatamente com essa pesquisa constante que caracteriza seu processo criativo, em um sentido muito amplo. Ele diz que a criação é “a conquista permanente de algo e não pode cair em um processo burocrático como, por exemplo, repetir soluções formais já encontradas”. Essa necessidade de novas conquistas tem, por exemplo, esta outra anotação: “A série “Aquela que não está” esgota uma linda solução formal. Esta é a minha natureza, a natureza do meu trabalho. O próximo terá uma nova solução.”

Ao observar as anotações verbais de Senise, percebe-se uma discussão permanente sobre quais seriam os fios comuns subjacentes a suas obras. As notas são, em muitos momentos, a explicação desse princípio gerador. É evidente que, na prática criativa do artista, existem princípios de caráter geral envoltos pela aura da singularidade, que chamamos aqui: projeto poético. Gostos e crenças que regem sua ação – um projeto pessoal, singular e dinâmico, que também muda com o tempo.

O projeto está ligado aos princípios éticos do artista, a seu sistema de valores e a sua forma de representar o mundo. Também podemos falar de um projeto ético movido pelo seu grande destino estético. São princípios éticos e estéticos, de caráter geral, que norteiam a sua ação plástica: orientam o momento singular que cada obra representa. Podemos dizer que os cadernos de Senise são uma forma que o artista tem de conhecer, tocar e manipular seu projeto poético, por meio de diálogos intrapessoais preservados pelas anotações. Este projeto não é claramente conhecido por ele, mas define-se à medida que suas obras são realizadas. Não são princípios pré-estabelecidos. As tendências poéticas definem-se ao longo do percurso: são leis em curso de construção e transformação, que submetem as obras, em fase de criação, a uma avaliação constante e a um julgamento contínuo. Comentários sobre as obras já expostas, por exemplo, parecem funcionar como forma de conhecimento de seu projeto geral. Pode-se argumentar que, de modo geral, os cadernos aparecerão como auxiliares de Senise em seu processo de conhecimento do que é sua pintura e na percepção de si mesmo enquanto artista.

Certas questões desempenham o papel de suporte do projeto poético de Daniel Senise, cuja construção está escrita nos cadernos: a força da imagem, a identidade de sua pintura, a atenção especial dada ao binômio sudário & memória. Esta relação de conceitos teve uma função marcante no seu processo, visto que agiu como organizador de obras já realizadas, ou seja, como meio de dar unidade a seu trabalho e permitir que as pinturas não sejam vistas como obras isoladas e dispersas. O binômio parece ter sido abandonado quando se revelou limitador. Apesar de tudo, deixa marcas indeléveis, como o próprio sudário, na sua obra.

 

Ato comunicativo

Quando se pensa na tendência do processo criativo, para além do limite individual do grande projeto do artista, ela se materializa também como uma tendência para os outros. A arte é social porque toda obra de arte é um fenômeno de relações entre os seres humanos (Mário de Andrade, 1989).

Pode-se discutir esse aspecto da comunicação das obras de Senise sob várias perspectivas, por exemplo, o diálogo que cada pintura mantém com outras obras do mesmo artista e com a grande corrente da história da arte e da ciência. Existem ainda outras formas de diálogo nestes cadernos.

Tendência e acaso

As anotações de Senise também levantam a questão do acaso. Peirce fala do acaso como uma forma de evolução do pensamento: evolução por acaso, variação circunstancial; indeterminação absoluta e espontaneidade; um desenvolvimento do pensamento que consiste em idéias habituais que partem em diferentes direções, sem propósito e sem limitações. Elas são acionadas por circunstâncias externas ou pela força da lógica. Os novos começos são seguidos por resultados intangíveis que tendem a fixar algumas direções e não outras (Peirce, 1995). Portanto, não há motivo para tomar tal ou tal direção: é uma evolução incontrolável, que mostra o poder criativo do acaso.

Observamos, durante o processo criativo, a junção de palavras vagas, de tendências e imprevistos ocasionados pelo acaso. Captamos momentos da evolução fortuita do pensamento do artista. O percurso é temporariamente alterado, o artista acolhe o acaso e o trabalho em curso incorpora desvios. Depois de acolhê-lo, não há como voltar para o processo anterior.

Falar do acaso para Senise vai muito além dos limites da verificação ingênua da entrada, de forma inesperada, de um elemento externo ao processo. Os cadernos mostram que, por um lado, o artista busca o acidental, acasos “construídos”. As anotações agem, muitas vezes, como formas de planejamento do acaso, mesmo que pareça muito paradoxal. Existe uma expectativa do inesperado. Por outro lado, a absorção dos resultados do acaso depende da qualidade do que eles oferecem, ou seja, precisam passar pelas avaliações do artista: “Minha participação (física) é necessária nesses acidentes (enquanto pintor). Não é um “objeto encontrado”, comenta Senise em uma de suas anotações.

 

Recompensa material

Peirce fala de um maquinário eficiente para atingir o objetivo: uma causa física para a causa final. As duas não são apenas compatíveis: a causa final só pode ser alcançada por meio da causa efetiva – nesse sentido, a causa final sugere a possibilidade de uma explicação, que também é física (Ransdell, 1977). O artista busca um maquinário eficiente para a concretização da tendência, que se concretiza na construção das obras. A necessidade o impulsiona a agir, dando origem a um complexo processo de materialização, onde interferem continuamente todas as questões que cercam as tendências até agora discutidas. A intenção é assim transformada em ação. A realização é uma ação poética, ou então uma operação sensível muito ampla que se dá no âmbito do projeto do artista. O processo de construção da obra é a busca pela recompensa material pelo seu poder inventivo e sua sensibilidade (Kandinsky, 1990).

O esforço do artista é tornar visível o que vai existir – um trabalho sensível e intelectual realizado por um artesão. Um movimento constituído por sensações, ações e pensamentos, que sofre intervenções do consciente e do inconsciente. O hábito de tomar notas que, de certa forma, servem de suporte e alimento para futuras obras, já é um indício de passos concretos (causa eficaz) que podem levar à construção das obras.

Os cadernos de Senise guardam vestígios desse processo de construção, ou seja, os vestígios verbais de uma experiência pictórica. Senise não se serve, nesses momentos, dos cadernos para preparar a composição das obras ou para aperfeiçoar as imagens, como vemos nos esboços de muitos pintores, mas os usa para contar a pesquisa por processos próprios à construção de certas obras, que as telas animam visualmente na materialidade plástica.

A certa altura, diante de um problema com a produção de uma tela, ele anota:

Praticamente parei nos últimos quarenta dias. Nada mudou. As imagens de Giotto não querem sair. Tentei duas opções de apresentação para elas: uma com a casinha repetida três vezes com materiais variados. A outra, como chamei o “altar”, com a casinha no meio e duas teias de pontos, uma de cada lado. Não estou absolutamente convencido do valor destes trabalhos.

Mais adiante, ele expõe uma possível solução plástica, que descreve como estratégica:

Recomeçar as telas pelo fundo, ou seja, experimentar materiais. Voltar aos métodos antigos (Estou preparando o fundo, ainda pensando na casinha de Giotto).

Poucos dias depois, ele registra:

Hoje o problema das telas de Giotto está “resolvido”. O fundo era realmente o problema.

 

Diálogo entre palavras e imagens

As linguagens verbal e visual cumprem funções distintas nos cadernos de Senise, como acabamos de ver; apesar de tudo, elas não se apresentam de maneira hermética, mas se relacionam de várias maneiras. 

Como vimos acima, as reflexões que, de certa forma, dão corpo ao amplo projeto que sustenta a obra de Senise como um todo, são explicadas verbalmente. As notas do artista registram suas opiniões sobre diversos assuntos, relata sonhos, comenta livros que leu, discute suas próprias obras e as de outros artistas.

O trabalho com imagens provisórias, como vimos acima, desenvolve-se por meio da visualidade: os signos que chamamos de esboços figurativos dialogam entre si. Desenhos e algumas colagens vão construindo, gradativamente, ao longo do tempo, uma espécie de repertório da visualidade que interessa ao artista. É nesses momentos, frequentes nos cadernos, que podemos acompanhar o desenvolvimento do pensamento visual.

Em suas reflexões verbais, Senise às vezes recorre à visualidade, em uma relação de complementaridade. Podemos citar como exemplo as discussões sobre os preparativos para as exposições e o relato de um sonho em que palavras e imagens interagem no ato do registro.

O sonho anotado em outubro de 1992 descreve uma cena que talvez atue como gerador de obras em 1994 (fig. 5): “O avião começou a fazer suas manobras de aproximação em um mar repleto de pequenas embarcações com cabines.” Nesse ponto, Senise adiciona algumas imagens (ver fig. 6). Mais adiante, o sonho transforma o avião em um bumerangue. “[…] O avião ia fazer um pouso de emergência na água. Já não era mais um avião, mas duas longas asas semelhantes a um bumerangue.“ E o bumerangue continua sua história nos cadernos, mas com uma aparência já mais próxima das obras: não é mais o objeto, mas seu traço ou seu movimento (ver fig. 7 e 8).

Em outro lugar, o jogo entre imagem e fala tem regras diferentes: a imagem parece ter a primazia, na medida em que o artista está em pleno desenvolvimento de um pensamento visual e a palavra entra como lembrete, o que Daniel Ferrer (2000) chama de “Prescrições – indicações que visam a realização de um texto”, aqui prescrições verbais para futuras obras visuais. Vimos esse tipo de auto-injunção no exemplo apresentado anteriormente, onde Senise anotou: “Usar a cor terra plena.”

Outro tipo de relação entre fala e imagem se estabelece no que chamei de experimentação verbalizada. Nestes casos, a narrativa verbal prepara uma futura ação plástica – a narrativa toma o lugar dos esboços visuais (ver o exemplo da “casinha de Giotto” acima”) .

Como podemos ver, imagem e fala dialogam de maneiras diferentes, mas não há dúvida sobre a primazia da imagem nos cadernos de Senise. Mesmo quando a palavra ocupa um espaço maior – nas reflexões de caráter geral – está a serviço da visualidade, ou seja, nesses momentos ganha força e relevo na medida em que apóia vigorosamente o trabalho plástico.

 

Processo de reforço das imagens

Agora, vamos olhar mais de perto a importância dos cadernos de Senise no processo de reforço das imagens ao longo do tempo.

A força da imagem sobre Senise já está presente em sua percepção, como fica evidente quando fala de suas lembranças: “Há sempre a imagem (de um momento) predominante que 1) preenche a memória e 2) desativa o desejo de procurar outras imagens parecidas.” Seu processo de apropriação dos fenômenos é baseado em imagens com recortes e enquadramentos singulares.

O artista dedica muitas páginas de suas anotações à história das imagens, que só mais tarde receberão um tratamento pictórico. São momentos de reflexão visual em preto e branco, na maioria dos casos, que parecem preparar imagens, de origens diversas, que serão transportadas para futuras telas em cores. Nesses momentos, Senise tem um diálogo óbvio com a história da arte, da qual muitas de suas imagens são extraídas. A história das imagens, por sua vez, é contada visualmente por meio de uma seleção inicial, que elege algumas imagens dentre a ampla oferta no mundo com o qual o artista se relaciona.

Por algum motivo, Senise é provocado por certas imagens. O que fica claro é que a provocação suscitada não é suficiente: a percepção, a memória e a imaginação trabalham e dão origem a uma imagem, mais forte que qualquer outra, que toca a sensibilidade do artista, com maior intensidade, permitindo-lhe entrar nas suas pinturas.

Algumas das imagens, selecionadas em determinado momento, adquirem vigor ao longo do processo de análise que se expressa por uma repetição mais frequente nos cadernos e na ação do artista sobre eles. Assim, acontecem novas seleções que ativam critérios eminentemente pessoais.

Quando temos seus trabalhos em mente, vemos que certos elementos dos cadernos às vezes estão espalhados pelo texto, às vezes até espalhados entre vários livros…”, como diz Louis Hay (1990, p. 16); outros aparentemente não foram absorvidos por nenhuma obra ou, pelo menos, não foram usados ​​até então (ver figs. 9 e 10).

As imagens selecionadas são analisadas meticulosamente por meio de uma multiplicação sem fim. Cada vez que a forma é desenhada, o tempo passou e ela já não é a mesma. Diferentes posições, ângulos, combinações são utilizadas pelo artista para conhecer melhor essas imagens e avaliá-las aos poucos. A criação de Senise é, desse ponto de vista, um conhecimento obtido por meio da ação. No ato de justapor um grande número de repetições aparentes, as imagens acumulam experiência e sentido, ganhando consistência no campo de ação do projeto poético do artista. O processo de elaboração dessas imagens não pode ser descrito como a elaboração sucessiva de fragmentos. A construção de cada fragmento atua dialeticamente sobre o outro. 

Em um primeiro momento, cada imagem atua no conjunto das páginas dos cadernos. Quando esta imagem é retomada em outra página, ela se insere em um novo contexto. Este processo mostra que o interesse do pintor está mais centrado, nesta fase do processo, na imagem do que na composição na qual está incorporada. Ao serem levados adiante, esses fragmentos de imagens se enquadrarão em um novo contexto e, por consequência, terão novas relações com a totalidade que a obra oferecerá.

Os desenhos, portanto, embora tenham o aspecto de esboços ou desenhos preparatórios, não cumprem a função de preparar as telas, mas parecem atuar como meio de preparar ou elaborar imagens. Não há aparente preocupação com a precisão gráfica ou maior adequação da imagem, como encontramos nos esboços que preparam as obras, ainda que se caracterizem pela mesma fragilidade ou precariedade do traço.

As anotações visuais mostram possibilidades de fragmentos de obras que, então, passam por outra elaboração, desta vez de cunho plástico, quando transportadas para as telas.

O prego é um exemplo de imagem forte do universo imaginário do artista. Para entender os meios pelos quais o prego é absorvido pela obra de Senise, é importante termos duas pinturas em mente (ver fig. 11 e 12).

Vamos ver agora algumas páginas dos cadernos que mostram como funciona o prego de Senise (ver fig. 13, 14 e 15).

As associações, no caso da imagem do prego, como podemos ver, ganham muita complexidade pela multiplicação ou justaposição com outros pregos, e também com outras imagens, também vigorosas no processo do artista, como: uma nuvem de fumaça, um cérebro, um martelo e a imagem de Whistler, para citar alguns exemplos. 

Cada novo desenho, longe de apagar os anteriores, parece contaminado pelos outros e impregnado de uma história própria no processo criativo de Senise. Seus cadernos oferecem assim um vocabulário pessoal de imagens que ampliam suas definições a cada novo desenho e também mostram um jogo de associações visuais – uma prolixa justaposição de imagens.

Esse mecanismo de desenvolvimento do pensamento visual é observado nos cadernos em outras ocasiões, bem como em uma série de associações verbais, como neste exemplo (ver fig. 16):

 

elo perdido pregos tempo alguém que fica e não volta

alguém que nunca vai – que vai e volta

como o símbolo do infinito

como o ciclo da água

como os carros no trânsito

como as viagens internacionais

como os cães – os primitivos

como o pensamento inconclusivo

como o dinheiro

como o vento – como a roda

as cabeças cortadas são personagens tão legais

como os elefantes

como as formas das nuvens

como os gestos não calculados

 

É interessante notar que Senise carrega esse mesmo processo em algumas de suas obras compostas por duas ou quatro telas (dípticos e polípticos), que ganham significado por sua contiguidade. Em uma anotação, ele escreve que o díptico não é a descontinuidade entre os pensamentos, mas o que aparece na aproximação das duas imagens. Em outro momento, ele observa: “Posso dizer que meu trabalho é a justaposição de duas coisas para fazer uma terceira coisa.”.

O prego, tão elaborado nos cadernos, sofre transformações plenas de invenção quando é transportado para as telas de Senise. Em Portrait of the Artist’s Mother (1992) e em Sem título (1993), o prego é ressignificado em sua relação com a imagem de Whistler e quando é objeto de outros processos pictóricos. Em Bumerangue, onde está enferrujado, o prego é levado à tela como uma lembrança de sua materialidade (ver fig. 17 e 18). 

O trabalho de memória torna-se mais complexo na série Bumerangue, se fazemos uma ligação entre o sonho anotado, apresentado anteriormente, onde aparece o objeto bumerangue e a obra que só apresenta a memória do objeto por meio de seu vestígio, de seu traço ou movimento. É por esse processo que passam muitas imagens que se tornam paradigmáticas na obra de Senise e geram matrizes que indicam possíveis mundos pictóricos futuros.

É nas páginas dos cadernos que o universo imaginário de Daniel Senise vai se constituindo aos poucos. As anotações oferecem uma exposição da imaginação do artista, que se reflete gradualmente em suas telas. Os seus cadernos são o seu sótão muito particular onde “restos” são elaborados, como mostra esta nota: “A minha paisagem não contém nada senão restos. É um sótão cheio de objetos pessoais – resquícios de memória, de cultura – que foram parar na minha praia-sótão.”

A crença na imagem, professada verbalmente por Senise, é reforçada por esses caminhos preservados nos cadernos.

É interessante notar que o amálgama de palavras e imagens oferecido por seus cadernos não segue uma direção linear. Às vezes, tendem a trabalhos futuros, como nos casos em que acompanhamos a inserção nas telas de imagens discutidas visualmente. As anotações verbais conduzem às obras, por exemplo, por meio da preparação de imagens e exposições e também por meio da discussão de problemas técnicos ou de títulos de obras. No entanto, o artista não coloca os cadernos em ordem cronológica. Anotações antigas são recuperadas por obras recentes numa elaboração apoiada na memória. Esses mesmos cadernos recebem em troca pinturas e exposições já públicas, na forma de comentários verbais e visuais.

Os cadernos de Daniel Senise são um espaço onde o artista se constrói e que mostra a mão criativa animada pela reflexão e pelo desejo.

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Traduzido do francês por Sophie Bernard.

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