Daniel Senise

Daniel Senise

Bernardo Mosqueira

Texto publicado no catálogo da exposição Daniel Senise – Museu do Recôncavo realizada na Galeria Paulo Darzé, Salvador, 2019

Uma tela de Daniel Senise nos diz que é impossível lembrar sem inventar.

Antes que o galo cante

Em 1980, Daniel Senise, engenheiro recém-formado, trabalhava coordenando o projeto gráfico de videotexto do Banco Nacional. Com grande interesse em cultura, imagem e literatura, decidiu realizar um filme em colaboração com um amigo, baseado no poema dramático de Fernando Pessoa chamado “O Marinheiro” (1913). Naquela narrativa, três mulheres vestindo roupas escuras, como o ambiente, velam o corpo de uma quarta mulher, vestida de branco, durante a madrugada, à espera do nascer do Sol. Elas conversam de frente a uma janela, através da qual se pode ver um pedaço de mar. Iluminadas por tochas, quase à sombra, começam a debater sobre o que fazer com todo aquele tempo que tinham. A confabulação entre elas cria uma atmosfera nebulosa, sobretudo pela impossibilidade de distinguir entre invenção, sonho e lembrança no que elas dizem. Estabelece-se um ambiente de alta tensão entre a natureza ficcional, distante e duvidosa das falas das três mulheres e a presença física, real, daquele corpo inerte, frio, esticado, precisamente morto. Uma segunda tensão (semelhante à do poema “As Peras”, de Ferreira Gullar em “A Luta Corporal”, de 1954) se constrói pela ausência de marcações do tempo diante da evidência material da finitude que se aproxima. De repente, o galo canta, interrompendo a madrugada e o sonhar. “O Marinheiro” é um texto que infiltra a rigidez pétrea da morte com os fluxos de oniricidade e invenção. No processo de pensar a decupagem daquele filme, Senise propôs ao amigo a inclusão de um plano que mostrava um vaso chinês que estava ali na sala de sua casa onde se reuniam. Indagado pelo companheiro sobre o que motivaria aquela aparição curiosa, não soube explicar, e, por isso, o processo foi interrompido e o filme nunca realizado. A necessidade de comunicar ideias de maneira argumentativa (característica dos processos coletivos ou em equipe) afastou Daniel do cinema. Logo, ele se dedicaria à pintura, na qual se sentia livre para tomar decisões mais silenciosas e intuitivas.

 

Sobre os ombros do gigante

Daniel sempre foi um estudioso obcecado por conhecimento e invenção. Como forma de estudo e experimentação da pintura, logo no início impôs a si mesmo ciclos curtos de exercícios durante os quais deveria estudar e pintar “ao estilo” de artistas em que se interessava. Uma de suas primeiras referências foi Francis Bacon, que lhe encantava também pela forma como refletia a própria vida em sua obra. Em 1983, numa viagem a São Paulo ainda trabalhando pelo banco, teve a oportunidade de visitar a 17ª Bienal de São Paulo, onde conheceu o trabalho de Markus Lüpertz, que participava da representação da AIemanha*. Eram pinturas produzidas entre 1980 a 1982, com áreas mais expressivas de gestos livres, e outras mais precisas, de movimentos controlados. As pinturas mostravam sólidos compostos por diversos fragmentos e volumes bastante marcados. Ali estava a série “Cinco quadros sobre o fascismo”, com cada uma das telas intituladas “Gás”, “Resistência” etc. O contato com Lüpertz afetou Senise com tanta força que ele voltaria ao Rio, somaria essa experiência à leitura aficionada de revistas estrangeiras de arte, e passaria a realizar as pinturas em grandes formatos que experimentavam um flerte próprio com uma tendência internacional neoexpressionista e que se tornariam rapidamente um sucesso no mercado e na imprensa. Nessa época, Daniel pintava com uma tinta acrílica que produzia precariamente misturando pigmentos (sobretudo pó xadrez) a uma base industrial (uma cola branca PVA).

 

Primeiro capítulo

Naquele começo, tudo aconteceu muito rápido. Em 1984, o jovem Daniel Senise passou a lecionar na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. No mesmo ano, participou da ilustre exposição “Como vai você, Geração 80?” (que acaba de completar 35 anos em 14 de julho de 2019) com a pintura “Sansão” (mais abaixo). Logo, ele ganharia o prêmio do IV Salão Brasileiro de Arte e seria convidado por Sheila Leiner para participar da controversa 18ª Bienal de São Paulo (que ficou conhecida como “A Grande Tela”, em 1985). Com o convite, Senise decidiu deixar o emprego no banco e passou a se dedicar exclusivamente à pintura. Nesses primeiros anos, Daniel se questionou muito sobre o sentido da própria produção, buscando perceber e definir cada vez mais os seus interesses, sua poética, sua linguagem. Senise concluiu naquele momento que seu campo de experimentação seria a pintura e que seu desejo era desenvolvê-la como uma plataforma na qual pudesse inserir os elementos que lhe eram significativos para a construção de um universo próprio. A representação é sempre um jogo de perdas e ganhos e, naquelas pinturas iniciais, de grande formato e baixa variação cromática, Daniel trilhava um caminho de fuga da banalidade do mundo, produzindo imagens de forte presença mas muito mistério, baseadas em figuras heroicas, objeto domésticos do cotidiano, referências de história da arte e da própria vida afetiva e familiar. Nesse primeiríssimo momento, eram em grande parte figuras brancas volumosas, fragmentadas e enigmáticas, talvez esculturais, talvez fantasmagóricas, repousadas sobre a linha chão, posicionadas sobre fundos negros e que ocupavam as composições até quase o limite das bordas ou chegavam mesmo a ultrapassá-las.

Em 1987, foi iniciado o desafio de pintar a óleo. Precisando de mais tempo para a secagem, transformou sua técnica e, podendo olhar e tratar das telas por um período maior, começou a botar e tirar tinta da superfície inúmeras vezes. Obcecado por aprimorar a fatura e por desenvolver uma singularidade processual, estilística e conceitual, Daniel passou a pintar por tantas horas seguidas que desenvolveu uma enxaqueca pela inalação dos químicos característicos da alquimia da pintura à óleo. Nesse momento, Senise já estava absolutamente inspirado pela liberdade de Sigmar Polke e pelas relações poéticas estabelecidas entre as imagens formadas e as técnicas e materiais utilizados pelo artista. De Polke apreendeu a noção de que os suportes tradicionais da arte (entre eles, a pintura) não são neutros e que tudo o que participe da composição de uma obra é escolha do artista, que gera qualidades distintas de corporeidade e vibração.

De maneira bastante contrastante com as gerações hegemônicas anteriores na arte brasileira, Daniel Senise (e parte dos artistas da chamada Geração 80) não via seu trabalho como um lugar ideal para a explicação das relações de poder no mundo, com comentários ou reações aos fatos políticos nacionais. Suas questões eram mais relativas à própria pintura e aos processos de imaginação, nos sonhos, nas memórias, nos delírios. Com a tinta à óleo, suas pinturas ganharam transparências, densidades e sombreamentos que permitiam cenas cada vez mais oníricas. A partir de sua experiência como filho de um piloto de aviação comercial, Daniel começou a representar acidentes de avião e outros objetos voadores ou flutuantes mais ou menos inidentificáveis, em cujas estruturas desconhecidas podemos ver os esqueletos, ocos e peles. Aparecem sobre a tela nesse momento rabiscos e insinuações de anotações incompreensíveis esgrafitados.

 

Mistério

Em tudo aquilo que experimentamos na vida, há uma parte essencial que se mantém distante de nossa abertura. O que se vem à presença se mostra enquanto simultaneamente se oculta. Todo encontro, invenção, acontecimento, novidade, é um desvelamento poderoso e falho, uma fissão nuclear de consequências imprevisíveis e incontroláveis. O mistério se apresenta para cada um de nós de uma forma, é pessoal e não aceita contornos. Os problemas ou as questões são talvez solucionáveis e compartilháveis, mas o mistério não. A subjetividade vive no mistério. O mistério é inexorável à existência. Enquanto futuro, dá tempo ao ser. Enquanto passado, é o fundamento mais distante de nossa configuração. Enquanto presença, quando sacrificamos a racionalidade cartesiana aos seus pés, o que nos resta, o que ganhamos? É o mistério que nos move poeticamente. Ele é o responsável por toda sublimidade que podemos viver. O mistério está nas epifanias que resistem ao desencantamento do mundo. Numa sociedade que, em parte, ainda acredita buscar “clareza”, “esclarecimento”, e com princípios fundamentados na “Era das Luzes”, também existe o obscuro, o sombrio, o lado negro da Lua, o que não tem nome, o que não tem regra, tudo aquilo indominável à sensibilidade ou à razão. Diante do mistério, só podemos negá-lo (como modernamente e prosaicamente faz tudo aquilo que é estruturado pela epistemologia hegemônica) ou abraçá-Io (como nos permitem a arte e a espiritualidade, por exemplo). O mistério é inesgotável. E, justamente no momento em que se pensava a sobrevida da pintura (ainda que hoje essa discussão pareça ingênua), foi no mistério que Daniel Senise encontrou um caminho fértil para seu trabalho. Naquele período, ainda estavam bastante presentes as pinturas escuras, com fundos negros e figuras reluzentes (como, de alguma forma, são também os videotextos). Desde aquele início, até hoje, sua pesquisa se adensaria de mistério e desenvolveria um sem número de formas de evitar totalidades, evocar ambiguidades e afirmar a coexistência de diversas perspectivas (mais abaixo).

 

Acontecimento

Em 1987, Senise preparava obras para duas exposições coletivas nas quais participaria em Paris, no MAM e no Crédac. Os temas estavam cada vez mais pessoais e, mirando novamente a Bacon e Polke, sentia estar fazendo de sua pintura uma prova bastante matérica de sua passagem pelo mundo. Algumas das telas que queria realizar eram grandes demais para as paredes do ateliê, e ele decidiu prepará-las sobre o chão, que, então, guardava uma quantidade muito grande de restos de tintas de processos pictóricos anteriores. Ao levantar a tela para o plano vertical, os restos de tudo, a poeira, a sujeira, e a tinta, que se acumularam sobre o chão, haviam sido transferidos para o verso do tecido, respeitando as formas das ranhuras, rachaduras, buracos e demais detalhes do relevo do piso. Essa experiência de serendipitia, de revelação quase mística ou milagrosa (mais abaixo), seria definitiva para a obra de Daniel. Logo o artista repetiu o procedimento em outras áreas do ateliê e posteriormente em outros locais. Senise inventou diversas técnicas a partir dessa descoberta ao longo dos anos.  Inicialmente, trocou o linho pelo cretone, e trocou o óleo por novamente uma mistura de base acrílica com pigmentos (agora já de melhor qualidade). Numa época, passou a jogar com a relativa transparência das telas, escrevendo ou pintando no verso para que as marcas aparecessem na frente. Os panos resultantes dessa técnica, por alguns anos, foram utilizados como fundos para séries de trabalhos do artista e esse uso resultava na construção de uma visualidade etérea, onírica. Em dado momento, Senise passou a sobrepor pequenos objetos costurados ou colados às telas e, depois, utilizou ainda a oxidação de pregos ou outros produtos metálicos para marcar os tecidos. Por um período, misturou o óxido de ferro com resina para criar formas fragmentadas sobre as telas. Nessa época, teve a sensação de ter finalmente dominado os meios de criar a relação conceitual que tanto buscava entre aquilo representado e as técnicas e materiais utilizados para essa representação.

Em 1992, Daniel se mudou para Nova York. No momento do nascimento de seu filho, ao receber em suas mãos o bebê que nascia para este mundo, se surpreendeu com o fato de ele ter nascido com o rosto voltado para o chão (mais abaixo) e não para ele, como esperava. Naquele primeiro segundo, o que o atravessou mais fortemente foi a sensação de que, um dia, aquela vida que magicamente começava ali também teria um fim. Desde então, acredita ter perdido o medo do vazio e da morte (mais abaixo). Pouco tempo depois, sentado em um aeroporto em Nova York, vendo os aviões decolarem e pousarem, teve a ideia de dilacerar os tecidos em diversas partes para, a partir da recombinação dos fragmentos, montar novas imagens. Entre 1988 e 2019, mais de 30 lugares foram experimentados por essa técnica, em diversas cidades do Brasil e dos Estados Unidos, formando uma coleção enorme de diferentes tons e texturas. Esse acervo foi e é a base da maioria das séries de trabalho do artista desde então. Foi ainda em 1992 que Senise conceituou o que vinha fazendo com as impressões dos chãos sob as telas, como o “Sudário­Memória” (mais abaixo).

 

Sudário-Memoria 1

Em 1987, Senise foi convidado para realizar o cenário de uma peça teatral no Rio de Janeiro e decidiu construí-lo como um mugshot (retrato de presos) inspirado no Sudário de Turim. Essa escolha rendeu a censura da peça por parte do dono da casa de espetáculos. Dois anos e muito pensamento depois, num momento em que o artista sentia a necessidade de criar uma formalização para a sustentação conceitual de seu trabalho, Senise cunhou para sua prática o termo “Sudário-Memória”.

A palavra “sudário” pode ter diferentes sentidos, o primeiro deles (como expressa sua etimologia) é relativo à função de secar o suor atribuída a alguns panos no passado. O uso mais comum em português, entretanto, está ligado ao “Santo Sudário” ou “Sudário de Turim”, uma peça tão controversa quanto misteriosa, que mede mais de 4 metros de comprimento, e que exibe as marcas da frente e das costas de um homem aparentemente morto por crucificação. Parte dos cristãos acredita que este manto cobriu o corpo de Jesus entre seu sepultamento e sua ressurreição e que, neste processo, os detalhes corporais de Cristo teriam ficado milagrosamente marcados para que o tecido fosse usado como instrumento de fé e devoção. O ilustre “Sudário” é classificado como uma “acheiropoieta”, ou seja, um ícone formado sem o uso das mãos e por meio de um milagre (como o Véu de Verônica e a Tilma de Guadalupe, por exemplo).

Daniel poderia ter criado um termo para seu trabalho a partir da ideia da gravura, do carimbo, da matriz, do contato, do espelhamento, de uma roupa que o chão veste, de uma pele que o mundo troca, mas escolheu Sudário-Memória. Na prática, a técnica de emplastar o tecido com uma mistura de goma e pigmento é até mais próxima do que faziam os sacerdotes embalsamadores com as múmias no Egito. Mas vamos deixar essa comparação para outro texto. Se essa foi a escolha de Senise, me parece proveitoso pensar sobre esse termo. O sudário de Daniel pode ter em comum com o ícone cristão o fato de ser resultado de um pintar sem pincel, de criar imagens que são lembranças da materialidade de algo ausente ou distante, de gerar uma representação por meio do toque imediato entre o suporte e o objeto, etc. Tudo isso já foi dito de uma forma ou de outra e, por essa leitura, o sudário produzido por Daniel mostraria as marcas da morte (e da ressurreição) do corpo do mundo. Porém, se pensarmos na forma como Francis Bacon inspirou o jovem Senise por seu caráter autobiográfico, podemos imaginar que o sudário de Daniel pode ser, também, entendido como o pano impregnado pelos fluidos de suas ações, superfície onde se revelam as marcas de sua própria passagem pelo mundo, um sudário em sua memória.

 

Sudário-Memória 2

Era 2000 e Daniel havia passado os últimos anos utilizando as impressões dos pisos como fundos para suas pinturas. Naquele momento, o artista já estava recortando os tecidos em faixas e as rearranjando de forma a criar representações de espaços arquitetônicos. Quando o curador Paulo Herkenhoff foi ao seu ateliê em Nova York, nas paredes estavam algumas obras da série de museus e galerias. Segundo Senise, ao ser indagado sobre possíveis desdobramentos daquela série, Herkenhoff foi bastante radical ao dizer que o artista deveria utilizar os tecidos impressos para representar exclusivamente os lugares onde eles teriam sido produzidos.

Refletindo sob a luz do fato de Senise repetir ainda hoje este caso e de que o movimento do artista foi o de mover a produção para a direção contrária à sugestão de Paulo, podemos perceber que há algo bastante significativo nessa história — e que deve ser analisado. O que o trabalha ganha com o embaralhamento daqueles tecidos? O que surge da impossibilidade de definirmos com exatidão a origem daqueles recortes?

Memória é apreender, ler e conservar informações. É uma ordenação mutante de fragmentos retidos pela percepção e ficcionalizados por nosso sistema afetivo. O trabalho da memória é, por definição, um trabalho de montagem, um esforço de formalização, de organização de elementos heterogêneos, é a criação de dobras, continuidades e curtos-circuitos na continuidade do tempo. A memória preenche as lacunas que surgem em nossos encontros com o mundo. Ela é composta por imagens decaídas do real (sempre se perde algo), imagens de origens mais ou menos incertas, que se adensam irregularmente, resultando em representações plasmáticas, moventes e impossíveis de serem completamente compreendidas ou representadas.

Ao mesmo tempo, a memória é o que nos permite ser. Até a percepção, só nos alcança o que nos interessa, e quando as experiências conseguem chegar a nós, vão diretamente ao passado, nos dando sentido no tempo. A memória é esse processo em parte incontrolado de atualização, de prontificação para a presença. A memória é imprecisa e bem marcada, é estratificada, recalcada, desvelada, emaranhada, duvidosa e anacrônica, é, sobretudo, constantemente alterada, em cada fragmento, por nossas novas experiências. Porém, assim como é um processo de apreender, ler e conservar, também é um processo de ignorar, confundir e esquecer. Talvez, ter a noção de seu próprio trabalho como criação de espaços no universo dos sonhos e das memórias tenha feito Senise insistir nesse caminho de certa “desterritorialização” dos fragmentos diante do conselho de Herkenhoff. De alguma forma, parece que naquele momento Paulo falou justamente o que Daniel precisava ouvir. Porém, o fato de misturar os diferentes panos não significa, de maneira nenhuma, mesimantá-los. Cada fragmento, pó renovado, ovo de um pedaço de mundo, carrega em si vínculo físico e simbólico com um lugar específico. Não há apenas as marcas dos acontecimentos, mas uma certa memória energética de toda ação que se assentou naquele lugar. Sendo Daniel Senise um artista do mistério, escolher encarar esses tecidos de maneira tautológica seria a estratégia mais miserável. Esses tecidos são impregnados pela história dos acontecimentos de outros espaços (talvez como algumas telas de Jorge Guinle eram impregnadas por seu sêmen). Nesses panos, há muito o que não vemos, que não poderemos ver, mas que está lá (como talvez seja radicalizado pela enormidade alva de 2.892). É preciso de fé, coragem de acreditar, para poder ter a relação máxima com a força desses trabalhos.

Ao utilizar impressões de tantos espaços quanto necessários em cada obra, Senise faz com que suas peças tenham, potencialmente, fragmentos relativos a todos os lugares por onde já esteve no mundo. As memórias se tecem, se contaminam e preenchem as lacunas umas das outras de maneiras mais ou menos fluidas (no meio de um velório pode surgir um vaso chinês). Fica claro, assim, que o interesse de Senise não é apenas o de criar representações equivalentes de espaços físicos, mas também o de produzir um espaço ficcional, um corpo simbólico que cria e é criado pela memória de Daniel. Aqui, uma bela parábola sobre a representação: o pó conhece as formas do chão intimamente, em um tecido busca descrevê-lo com precisão, porém o máximo que consegue é se aproximar da invenção de sua inversão.

 

Do pó ao pó 

No momento em que Senise descola a tela do assoalho, a camada de poeira, sujeira e restos de toda a ordem, que repousava sobre o piso, é transferida para o tecido. Vemos os detalhes do chão, são marcas de crises, rastros de acontecimentos, vemos o tempo fazendo surgir sua própria potência sobre a matéria, vemos contratempos e a desintegração. Revelada ali está uma fina imagem espelhada do chão, entre o ser e o representar, formada pelo pó de onde viemos e para o qual voltaremos.

O que mantém corpos complexos com todas as suas partes unidas? O que mantém o corpo coeso antes de seu desmembramento, desfazimento, desaparecimento? O que deixa as coisas em pé? Pode ser uma boa pergunta para um religioso, um engenheiro ou um artista.

Na obra de Senise, há essa tensão formada entre a decomposição e a composição, entre a noção da finitude e a vida criativa. Se a matéria do mundo, esses restos de corpos e ações, se faz presente, ela transborda o horizonte da representação e nos coloca necessariamente questionamentos. O que haveria depois do fim? Nós só temos a possibilidade de vislumbrar sobre como são as coisas até o limite do chão. Nascemos sobre ele e, enquanto sobre ele, podemos muito. Quando nosso corpo for para abaixo dele, já não seremos: viveremos apenas nas nossas obras e em nossos filhos (que, como já sabemos, são o melhor remédio contra o medo de ser esquecido).

O trabalho de Daniel guarda relação muito forte com “O marinheiro” de Fernando Pessoa. Diante do corpo que nos lembra que o fim se aproxima, escolhe-se preencher o tempo sonhando, imaginando, justamente criando como forma de vida. Na estruturação dessas imagens, alguns elementos têm importância especial.

 

Chão

A relação com o chão aparece na obra de Daniel de maneira bastante significativa. Seja como parte do processo de elaboração das telas (que produz a fisicalidade das telas com as impressões) ou como elemento que orienta as composições das imagens. A primeira maneira talvez já tenha sido suficientemente tratada nesse texto. Mas ainda é importante ressaltar o chão como elemento ordenador na imaginação de Daniel. Como já vimos, também, sob o chão está o inatingível, o inexperienciável, a morte (não há eu para a verdadeira morte, não existe o encontro entre mim e ela. Podemos apenas assistir ou imaginar a morte de outros). Sobre o chão, estamos nós, que nascemos olhando para ele, engatinhamos, andamos, corremos, amamos, pulsamos, fazemos escolhas, criamos marcas sobre ele. Mais acima, para além do chão, nas alturas, estão as imagens, os sonhos, a imaginação, tudo aquilo que, em seu universo próprio, pode ignorar as leis da natureza: seja a gravidade ou a finitude. Acima de nossas cabeças está tudo que cansou de ser moderno e agora será eterno. Desde os anos 80, há uma recorrência de elementos como aviões, balões, objetos flutuantes, bumerangues, mulheres levitantes, pássaros, anjos, colunas que sobem até o infinito, estruturas que erguem casas nas alturas, toda uma diversidade de formas de evitar ou se afastar do piso. Sobretudo, há uma centralidade muito recorrente dada ao espaço entre as coisas, a ser preenchido de imagens e ações.

 

O milagre da visualidade

Em 1992, Senise registraria num caderno de anotações um sonho significativo. Na primeira página está escrito: “O avião começou a fazer as manobras de aproximação sobre um mar cheio de pequenos barcos com cabine”. O desenho que acompanha a anotação deixa claro que o ponto de vista dele é o de piloto ou da própria aeronave. E segue: “(…) O avião ia fazer um pouso de emergência na água. Já não era mais um avião e sim duas longas asas tipo bumerangue”. Na sequência, um grupo de desenhos em que linhas fazem sequências de voltas e retornam para o mesmo ponto. Entre 94 e 95, Senise desenvolveria uma série de pinturas intitulada “Bumerangue” a partir dessas anotações. As imagens são formadas por meio do uso da oxidação de pregos sobre a superfície. Observando algumas dessas obras, como a tela “3 Caminos”, encontramos a relação entre os desenhos e a silhueta de uma menina e, dessa forma, podemos imaginar que os tais desenhos bidimensionais podem talvez representar os traçados das aventuras do olhar pelo espaço. Essas obras de Daniel são derivações inspiradas   por um desenho no livro “Tesouros da Juventude”, uma espécie de enciclopédia para crianças e jovens, que havia sido importante para a infância de sua mãe. Nessas pinturas (como em muitas outras dessa época), as imagens foram realizadas por meio da oxidação de um número grande de pregos de ferro. Nessa série, está presente uma relação muito direta entre o corpo que se decompõe e a cristalização das imagens. Por isso, e além disso, é bom exemplo para se perceber um interesse de Daniel nessa relação entre o visível e o invisível.

Senise se refere muitas vezes à formação da imagem em seu trabalho como se ambicionasse um milagre. Na sua obra, são muitas alusões a momentos de “aparição”, movimentos entre o desconhecido e o reconhecido. Seja a imagem do piso revelada no sudário, o desenho enferrujado deixado pelos pregos, uma palavra insistente pintada no verso, uma imagem por trás de um voal, um olho vivo nos mirando desde o fundo da obra, uma maquete que se agiganta e realiza, uma marca deixada pela luz do sol, uma cor protegida pela sombra, um anjo que se mostra, ou um rastro de bumerangue que se faz visível — são muitos os momentos em que parece que estamos diante de uma revelação, diante de uma imagem misteriosa, rara, cuja apreciação é um privilégio, um milagre. É dessa forma que se fazem cativantes, que, por algum tempo, nos têm em seu cativeiro de encantamento.

 

Perspectivas

Desde o começo da década de 2000, grande parte dos trabalhos de Daniel são resultados de exercícios de perspectiva com os recortes dos sudários. Na narrativa hegemônica sobre a história da arte, o advento da perspectiva remonta a Giotto (1267-1337) e Brunelleschi (1377-1446). O sistema gráfico da perspectiva é o que projeta a ilusão de profundidade sobre um plano de representação. As pinturas de Senise desde então nos possibilitam dois olhares: nos lembram serem pó de mundo sobre superfícies planas e nos oferecem a experiência de interpretação da luz como imagens em profundidade.

Mesmo antes de começar a recortar as teias e criar montagens com essas ilusões de perspectivas, Daniel realizou a série “Ela que não está lá”. Nesse conjunto, Senise se baseia num afresco justamente de Giotto chamado “O funeral de São Francisco”, que fica na Capela Bardi, em Florença, e que mostra ao mesmo tempo o corpo do santo sendo velado por frades. O médico Girolamo conferindo seus estigmas, e a ascensão de São Francisco, elevado em voo por anjos. Anos depois da pintura ser realizada pelo mestre italiano, a capela sofreu uma série de reformas, que cobriram as pinturas com cal e construíram junto às paredes um conjunto de construções tumulares. Mais recentemente, os túmulos e o cal foram retirados e a pintura revelada, não sem apresentar as cicatrizes deixadas pela construção e demolição do tal túmulo. No afresco como ele é hoje, estão presentes relações de tensão entre o voo e o chão, entre o morto e o vivo, entre a fé do santo que toca os anjos no céu e a descrença do médico que toca o morto na terra, entre o corpo de Francisco na pintura e o corpo que outrora estivera no túmulo na capela, entre o entendimento da pintura como imagem (que se direciona à eternidade) e o entendimento da pintura enquanto corpo (destinada ao pó), e entre a ilusão de perspectiva de Giotto e a lembrança do plano causada pela marca das obras. Diante do afresco, podemos focar nos recortes ou na cena. Para a série “Ela que não está”, Daniel reproduziu as formas da marca deixada pelo túmulo e “substituiu” a pintura de Giotto por fundos realizados como sudários. Estranhamente, o vazio que o túmulo deixou na pintura tem o formato que remete ao de uma casa e talvez esse seja um dos trabalhos onde a questão da morte e do vestígio é mais evidente.

A citação a Giotto não foi isolada. Nos primeiros 15 anos de produção, eram comuns as citações mais ou menos claras de obras de outros artistas, como Caspar David Friedrich, Devis, Fra Angelico, Goya, Hobbema, Hopper, Rafael e Whistler. Daquela forma, Daniel se incluía numa tradição da pintura, mostrando proximidades e distâncias, aparições e apagamentos. A obra de Daniel (ainda mais nos primeiros 20 anos) é também fortemente autobiográfica, e as referências da história da arte muitas vezes se relacionavam com questões relativas às cenas do ateliê, aos chãos por onde pisava, aos museus que visitava, à morte da mãe, à vida do pai, à relação com algum amigo ou experiência etc.

Se pensamos que o advento da perspectiva na história da arte foi um sintoma de um momento da cultura europeia em que se começou a considerar prioritariamente a subjetividade individual em detrimento da visão de Deus e da sociedade, percebemos que há uma coerência. Uma continuidade, uma relação direta entre os exercícios de perspectiva e a prática autobiográfica de Daniel Senise.

 

 Vida e o Tempo

Como disse Heidegger, “a morte é a pedra de toque”, é a presença da possibilidade da impossibilidade de toda e qualquer possibilidade. Mas e a vida? E a vida o que é?  Se a morte é certa e indeterminada, ela é a presença que nos dá o futuro, a vida futura, ela ilumina todas as nossas chances de criação, ação, invenção, realização. Se há de fato um interesse pelo tema da finitude na obra de Daniel, há simultaneamente uma discreta valorização da vida como jogo positivo de funções, como capacidade de gerar mudanças, marcas, perturbações nos ambientes. O seminal “Sansão” (pintura preta e branca sobre plástico laranja de 1984),   tentando derrubar as colunas que sustentavam o teto sobre sua cabeça, representava em parte essa tensão entre o esforço criativo e a certeza do fim. “Silvio Romero 34 / dez 09” (que é uma fotografia de 2009 deixada no chão do ateliê sendo marcada pelo dia a dia da atividade criativa), por exemplo, também existe nesse eixo. Há ainda, claro, os sudários (que estabelecem esquemas muito singulares de passagem entre o fluir daquilo que se chama vida para a formalização daquilo que se chama arte), e de maneira próxima a eles há a série pela qual Daniel sobrepõe fotografias mostrando espaços em processo de ruína com objetos, fragmentos ou sudários recolhidos nesses lugares (como no conjunto “Museu do Recôncavo”). Em todos esses casos, o Tempo nos é apresentado de mãos dadas com o fantasma da finitude. Porém, pelo outro lado, mamamos em seu peito e preenchemos nossas vísceras de força e desejos.

 

O vestígio e a aura

Walter Benjamin uma vez escreveu: “O vestígio é o aparecimento de uma proximidade, por mais distante que esteja aquilo que o deixou. A aura é o aparecimento de uma distância, por mais próximo que esteja aquilo que a suscita. No vestígio, apossamo-nos da coisa; na aura, ela se apodera sobre nós”. As obras de Daniel Senise, elaboradas desde o final da década de 1980, são justamente, ao mesmo tempo, compostas por vestígios e dotadas de dimensão aurática. O conceito de elo-perdido (utilizado como título de uma obra fundante da trajetória de Daniel) nos lembra que os vestígios podem assinalar a impossibilidade de conhecer o passado completamente pelo fato de que grande parte dele naturalmente se perde. O vestígio, como o fóssil de transição, é uma semelhança perdida. Mas ao mesmo tempo o elo perdido (com seus retornos, ressurgências, ecos, rebatimentos e sobretudo lacunas) é o sobrevivente do passado a partir do qual nós poderemos inventar imagens, narrativas, reflexões, formas de ver o mundo e a nós mesmos. A combinação de vestígios na produção de Daniel remonta a uma enorme variedade e quantidade de passados desconhecidos. Isso resulta em presenças gigantescamente misteriosas que apoderam sobre nós, tornando-nos pequenos diante de toda a potência geradora de curiosidade, devaneio, delírio, imaginação. À frente de suas obras, lembramos que toda perda irrecuperável nos dá o presente, o único território possível à vida.

A vida, já se disse, é ordem, a vida apenas, sem mistificação.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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