Daniel Senise

Mesmo quando ela não está, está

Paulo Reis

Texto para exposição do artista realizada na Galeria Canvas, Porto, Portugual, 2001

Ainda que a arte abstrata tenha renunciado à representação, nunca será demais realçar o fato de que ela leva adiante as composições livres e informais praticadas em pinturas da natureza pelos grandes artistas do fim do século XIX.

Meyer Schapiro

 

A redefinição do espaço da pintura contemporânea perpetrada por Daniel Senise nestes seus anos de atuação, nos faz refletir sobre o significado real de ser um artista na pós-modernidade. Vendo suas obras e comparando com outras de artistas de sua geração, fica a pergunta: será que é preciso apenas para a arte contemporânea viver de boutades, alegorias ou sorrisos de escárnio mediante as circunstâncias em que as obras são apresentadas? Daniel Senise mesmo sendo o artista maduro, dono de uma autonomia estética ímpar, se permite a experimentar e a elaborar jogos visuais que somente uma pessoa com um mínimo de conhecimento da história da arte, para perceber suas referências. Enquanto alguns artistas preferem a periferia da citação e, com isso, esboçam apenas um jogo ilusório, Senise mergulha em sua pesquisa, extraindo mais que um jogo visual, uma epifania.

A característica inerente essencial ao ato estético em Daniel Senise é o de poder compartilhar da sua leitura, de suas matrizes com as pessoas. Ou seja, através de seu vocabulário compartilhado das ideias e imagens já existentes, pois tudo que está ou não está na tela, está em algum lugar da arte, é o elo entre o ponto de vista do artista e o ponto de vista do público. Trata-se de uma mão dupla de associações e necessidades. O que Paulo Herkenhoff chama atenção como símbolos de um excesso de conhecimento da história da arte, “resolvidos numa memória pós-metafísica, pois o fundo vazio, antes do símbolo, jaz como o deserto da abstração da história da arte”. Para o crítico, a iconologia de Daniel Senise, que pode nascer de um fragmento de um quadro, é o vestígio da história da arte, “é um símbolo de readymade”.

Se no passado Daniel Senise foi capaz de apoderar de fragmentos de imagens de Rafael, de Fra Angelico, de Hobbema, de Goya, de Whistler ou de Caspar David Friedrich, para construir uma representação além da mera referência, dando autonomia à sua criação, mesmo hoje esse atributo lhe é especial. Dotado de forte imaginação e destreza técnica, o artista empreende muitas vezes uma pintura repleta de referências impossíveis de se reconhecer sem antes conhecer. A imagética perpetrada por Senise não é simbolista, nem tão pouco icônica, é, antes de tudo, indicial.

O princípio lógico da arte para o artista é essencialmente o problema da imagem cognoscível. Isto é: reúne e coordena dentro de um quadro as diferentes categorias dos signos que aquela arte pretende demonstrar. São imagens no sentido teórico do termo, também icônicos, analógicos, mas, sobretudo plásticos, pois suas formas, cores e organização espacial são um marca sua. Daniel nos ajuda com sua arte a buscar, numa interação do sentido da visão com o fundo da mente, decifrar no consciente o que está sendo visto, de forma sistemática, mas também prazerosa.

Sua arte é calcada no efeito da aparição, pois a imagem é reconhecível, e da desaparição, onde a imagem mistura-se a outras imagens, criando um efeito diferenciado da sua gênese. Se arte pós-moderna é calcada na citação, muitas vezes tem sido muito alto o preço pago por alguns artistas por suas experimentações visuais. Devido à atual tendência da pós ­modernidade em fazer referências e compreender as profundezas verbais de uma obra, a arte dos anos oitenta pagou por banalizar clássicos, como fizeram Francesco Clemente e Sandro Chia. Daí a questão: se outros fizeram melhor por que refazê-los desta maneira? Apenas por citação? Qual a necessidade desta obra existir então? O problema da referência está longe de ser novo, ela mergulha nas próprias raízes da tradição da arte ocidental, pois Michelangelo, Rafael, Vermeer e outros tantos fizeram referências a pintores de suas admirações, contudo suas obras são admiradas por elas próprias.

O artista propõe em suas pinturas mais que um estudo de caso da pintura. Para o artista e teórico Marco Veloso, a arte de Daniel Senise é a proposição da arte como arte, da arte como contexto para o comentário dos possíveis contextos para a arte. O que também o crítico Ivo Mesquita irá ressaltar como inicial em sua obra, onde as pinturas, desde o princípio, estabeleceram uma relação direta com a história da arte. Com o universo das imagens e os seus modos de construção e percepção. Para Mesquita, o trabalho de Daniel Senise retém as lições da história, mas sem deixar de criticar a dimensão idealista da tradição. “0 legado deixado por ele é formado por imagens gastas pelo tempo, bandagens e oxidações, superfícies às quais já se infringiu toda ordem de operação e discurso. Como em uma paisagem calcinada. O que se vê são vestígios de coisas”.

Como nesta série de interiores, em que o artista retoma sua pintura arrancada do solo, remontando ao começo de suas pinturas. O artista colou no chão do seu ateliê de Nova York, no chão da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, e no chão de um museu nos EUA, tecidos (cretone) que mais tarde foram arrancados do piso. Esses tecidos, com toda sua carga de pigmento, pó, sujeira, passos, foram cortados em “fatias”, mas que ainda deixavam entrever uma coloração cor de carne escura, amarronzada, tomadas ao longo do tempo de sua exposição ao solo, da sua hibernação involuntária.

Posteriormente essas fatias foram coladas a outras telas, desta vez elaboradas como um espaço arquitetônico desejado pelo artista. Esses espaços foram “criados”, tomados de espaços já existentes, como o Die Art Center, o Centro Galego de Arte Contemporânea, a Casa Lange, em Krefeld (cidade onde Beyus nasceu), das Cavalariças do Parque Lage ou de um corredor de acesso ao seu ateliê. Outros espaços, Daniel tomou das pinturas de Velásquez e Rafael. Em ambos os procedimentos, esses espaços são reais, pois uma pintura reproduz um interior de um espaço existente retratado pelo artista. Contudo, os espaços arquitetônicos criados para museus estão destinados a exibição da arte. Os espaços dentro da arte são espaços de uma pintura para serem localizados nos espaços de exposição. É neste moto contínuo que se desenvolve o jogo indicial.

O procedimento de “pintar” sobre uma superfície para depois colar sobre outras nos faz lembrar os pintores da antiguidade. Antes da renascença executavam suas pinturas em tecidos e depois colavam sobre as paredes para criar afrescos. São, então, espaços pictóricos da representação antes de serem históricos, o que para Daniel contém a história da história da pintura. Esse jogo pode parecer perigoso e instável para alguns artistas, mas em Daniel Senise o resultado é primoroso. O artista nos faz penetrar em outro espaço virtual da representação. Toda a série de interiores que o artista vem desenvolvendo, seja a representação de um espaço do museu, da escola de arte, do ateliê ou ainda de uma obra de Saenredam, é uma prova que Daniel não se afastou do seu território do teatro da pintura. Do teatro das sensações mutiladas, dos monumentos sombrios, ambientados numa atmosfera de catástrofe e terror noturno, oferecendo como dispositivo retórico e cenográfico, conforme nos alertou o crítico Wilson Coutinho, ainda no seu começo como pintor.

Essa série de interiores é como um retorno ao início dos anos oitenta. Nietzscheanamente Daniel vive retornando em suas obsessões: pintura e história da arte. Um risco para artistas carentes de temáticas ou com medo de desviar-se do acalentado como descoberta. Convém lembrar, no entanto, que Daniel Senise, com formação em engenharia, esteve sempre perto de construções, interiores, colunas, frontões e que estes elementos apareciam dispersos em sua encenação. Desde sempre a sua pintura se interessou pela expressão do espaço fechado e fez do tema uma alegoria da cultura, uma construção humana em oposição à pintura da natureza, mimese da criação divina.

Como artista ciente da natureza da arte e de seu papel como criador, Daniel Senise corre os riscos de uma aventura controlada pela experiência do exercício cotidiano, do embate da pintura nos tempos atuais. Isso nos esclarece que a qualidade de sua obra não é porque mantém a segurança de roteiros a priori. Como artista inquieto, elabora alternativas para a sua pintura extraídas do seu próprio território. Fenômeno que faz de sua pintura uma figuração abrangente, repleta de referências à arte e à história, aliando um alto padrão de destreza artística com refinado resultado plástico. Com sua arte, Daniel Senise nos ajuda a atravessar o mar incomum da especialização temática encontrada nos artistas de sua geração. O que por si só, constitui uma característica notável da sua pintura.

 

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