Daniel Senise

Entrevista a Agnaldo Farias

Agnaldo Farias 

Entrevista realizada entre 6 e 7 de abril de 2006 e publicada no catálogo da exposição Mostra Daniel Senise 2000-2006 realizada no Museu Oscar Niemeyer, Curitiba, em 2006

 

A: Há dias atrás, eu havia perguntado a você de onde vinham suas ideias. Você principiou respondendo que isso era difícil de responder e que, mais do que um problema de pintura, as imagens sempre lhe pareceram algo essencial.

D: É que eu sempre gostei de ver imagens. Para começar, meu aprendizado de arte foi feito através de reproduções. Sempre gostei de coisas que não eram classificadas como arte. E quando comecei a pintar — quando comecei a lidar de uma maneira mais consciente com problemas relacionados ao processo pictórico — a pintura passou a mediar esse meu contato com as imagens. Então, a minha pergunta era: por que eu tinha que fazer aquilo como pintura? Onde é que estava a relevância de pensar as imagens através de pinturas? Isso, muito no início, quando a minha pintura era tinta e pincel.

 A: Isso já eram os anos 80, certo? Que idade você tinha?

D: 24.

 A: Então foi antes dos 80?

D: É, começou antes. Já naquela altura, eu começava a ver a pintura como algo mutável. Hoje eu a vejo ainda mais ampla, quer dizer, a linguagem da pintura não está presa ao pincel e a tinta. Acho que o único dado irredutível de uma pintura é que ela é uma superfície, que pode ser plana embora não necessariamente. É claro que isso depende de você, de como você compreende os limites dela, enfim, tudo pode variar enormemente. Eu comecei a usar uma forma de pintar meio expressionista como estratégia para pensar as imagens — para começar a ver o que me interessava. Mas digamos que eu não tenha feito isso de forma completamente consciente.

 A: E por que você começou por aí, pela via expressionista?

D: Talvez porque era o que muitos estavam fazendo. 

A: Quem? Professores, artistas e colegas da Escola de Artes Visuais (Parque Laje), os artistas plásticos pelos quais você se interessava?

D: Principalmente na Escola de Artes Visuais. Eu olhava muito para fora, para o meio internacional e havia uma onda de pintura muito grande. Era uma época em que as publicações chegavam rapidamente e, aí, um artista fazia uma exposição no exterior e, no mês seguinte, essas imagens já estavam disponíveis para a gente. Acho isso natural. Você é contemporâneo no sentido em que é sensível à produção que você está assistindo. 

A: Quando você decidiu encarar o lance de levar a arte profissionalmente? Você estava na Engenharia, não é mesmo?

D: Quando saí, quando terminei a Engenharia, fui trabalhar em coisas que não me atrapalhassem a pintura.

A: Então, você já tinha essa consciência?

D: Não era completamente consciente, mas o dia em que comecei a estudar pintura, quando tinha entre 24 e 25 anos, vi que havia arrumado um problema para mim. Pensei: como é que vou resolver isso agora?

 A: E você já tinha ateliê?

D: As aulas no Parque Lage funcionaram como um momento de passagem, um pretexto para encontrar um pessoal e arrumar um ateliê imediatamente.

 A: Quem eram os outros caras?

D: Primeiro O (Luis) Pizarro, João Magalhães e tinha mais alguém que não lembro mais o nome. Depois entrou o Ângelo (Venosa) e ficou eu, Pizarro, Ângelo e João Magalhães.

 A: O ateliê era aqui (Lapa)?

D: Não, no início, era em Botafogo, numa casa. Na época, eu trabalhava no Banco Nacional e ia para São Paulo toda semana. Fazia o projeto do videotexto do Banco Nacional. E como tinha a formação de engenheiro e gostava de imagens, porque já desenhava — inclusive fazia cartuns em jornais — arrumei um trabalho que consistia em coordenar a parte gráfica do videotexto, que é uma coisa que já nem existe mais. Era um trabalho de seis horas por dia e o resto do tempo eu ficava no ateliê. Bem, numa dessas idas a São Paulo, em 1983, visitei a Bienal e fiquei muito impressionado com a obra do (Markus) Lüpertz. Tudo veio muito rápido. Antes, a coisa era mais fugaz: três semanas com Francis Bacon, um mês com David Hockney… um monte de gente, mas com o Lüpertz consegui organizar algo melhor: uma maneira mais consistente de trabalhar com a pintura, com os meios que eu podia dominar rapidamente para, daí, começar a desenvolver meu trabalho, pensar nas imagens através desses elementos. Criei uma pintura simples para mim, com características expressionistas ou neoexpressionistas, porque o Lüpertz não é realmente neoexpressionista. Os neoexpressionistas eram caras mais jovens como Salomé e Rainer Fetting. O Lüpertz era mais complexo. Organizei um vocabulário simples para mim, em termos de cores e de tratamento: usava a tinta acrílica que seca mais rápido e não se mistura tanto quanto o óleo.

 A: E quando você percebeu o trabalho do Lüpertz, mais gente percebeu? Quando você voltou para o Rio, o impacto dessa descoberta entrou logo no seu trabalho?

D: De fato, eu fiquei muito impressionado quando olhei o Lüpertz. Mais do que qualquer coisa ele parecia ideal para mim. Não era mais incensado na época do que Francesco Clemente ou Anselm Kiefer, mas me parecia mais próximo daquilo que eu desejava. Naquele momento, não sabia muito de pintura, mas tinha uma vontade muito grande de levá-la adiante, de modo que quando olhei o Lüpertz, tentei traduzi-lo na minha pintura. Eu fazia o seguinte: pegava um tema, por exemplo, o pinguim que estava na minha geladeira, e ia pintando com essa imagem na cabeça “à maneira” do Lüpertz que, no fundo, era mais a minha maneira. Isto porque está claro que não saía um Lüpertz, saía uma coisa mais minha. E obviamente que era uma pintura muito imediata, sem a sofisticação que tem a pintura do Lüpertz — uma tinta acrílica que secava muito rápido. A tinta que eu usava era uma mistura de pigmentos com uma base acrílica industrial, mais simples que a tinta à óleo. Depois, quando inclui tinta a óleo, tudo complicou um pouco mais. Eu estava lidando com problemas pictóricos, próprios do processo de pintura da composição, do equilíbrio da cor. Enfim, estava fazendo uma pintura.

A: Você tinha clareza dessas noções?

D: Era quase tudo meio intuitivo. Gostava, como gosto, de olhar para imagens, gosto de pensar nelas.

 A: Criticamente. Você as olhava através de um olhar crítico?

D: É. Mas há sempre uma escolha pessoal. Uma coisa pode te interessar ou não, por exemplo, uma imagem errada pode agradar. Porque existe uma incompletude, uma falta que faz com que você precise montar aquilo na sua cabeça. lsso, talvez, no começo, já tenha me dado a ideia de que o quadro se realiza na cabeça do espectador, na minha. Eu tinha uma vontade de desorganizar meu impulso. Sou um cara organizado. Quando pintava, o que comandava era o desejo de uma coisa final, de uma imagem. Chegar numa pintura sempre em algo provocado por uma imagem, um objeto ou a impressão deixada por alguma coisa. Certa vez, fiz um Santo Antônio; noutra, foi a imagem de um jogador chutando uma bola. De certa forma, era como se aqueles objetos e imagens me tocassem. Tinha, por exemplo, as cores do pinguim da minha geladeira, cores que eu passei a usar como o preto, o branco e o vermelho — uma coisa quase heráldica, que é uma coisa germânica também — e o azul, um pouquinho. Tudo isso funcionou muito bem para mim. Em seis meses, passei da confusão para alguém que tinha algo a dizer. A coisa foi meio assim: um dia, estávamos no ateliê quando soubemos que um amigo havia entrado no Salão Nacional e ganho um prêmio. Eu e o Ângelo fomos para o cinema chateados. 

A: Quem era o amigo premiado?

D: Pizarro. Mas não, foi um pouco diferente, o Pizarro havia entrado no Salão e nós não. No meio da sessão do cinema, eu virei para o Ângelo e disse: “esse cara vai ganhar o prêmio”.

 A: E ganhou?

D: Ganhou. E aí veio Lüpertz para me organizar. 

A: O Lüpertz veio depois disso?

D: Foi. Mas foi tudo muito rápido. Como eu disse, vi o Lüpertz na Bienal de São Paulo em 83 e, em 85, era eu quem estava na Bienal.

 A: E assim como você viu o Lüpertz, os caras da Casa 7 também viram e…

D: Mas antes eles viram o (Phillip) Guston, não foi? 

A: Em 81. Mas não foi a única coisa que eles viram.

D: Eles usavam uma tinta a óleo, uma meleca mais oleosa. 

A: É verdade, era mais oleoso.

D: E o João Manuel (Satamini, dono da Galeria Subdistrito, em São Paulo) falou: “o pessoal da Casa 7 diz que você não sabe pintar a óleo”. Foi logo quando eu me mudei para o ateliê aqui do outro lado da rua.

A: Mas quem é que sabia?

D: Mas isso foi chato. Quando a gente se conheceu ficou aquela coisa de um grupo num canto, outro grupo no outro. E o João no meio. lsso foi no tempo em que estávamos na casa do outro lado da rua. E aí, eu comecei a usar óleo, o que complicou ainda mais. Isso depois da Bienal de 85. Eu entrei na Bienal e foi tudo rápido. Ganhei um prêmio, dois prêmios, alguns prêmios com essa pintura e pensei: “isso daqui vai acabar daqui a dois anos”. 

A: O que que ia acabar?

D: Eu sentia que aquilo não podia continuar. Aquilo era um momento, eu estava sendo uma vítima — talvez não seja a melhor palavra —, mas estava sendo vítima de uma situação. Tinha sido escolhido… 

A: Digamos que você veio a calhar para uma determinada expectativa do meio.

D: É, eu estava no lugar certo, na hora certa, mas, o fato é que tinha que começar a pintar de verdade. Então, comecei a usar óleo até que, em 87, entrei na minha primeira crise de verdade, e o nome dela era tinta a óleo. Eu ficava naquela coisa: as telas não secavam, o processo começou a ficar mais complexo e comecei não só a adicionar como a retirar tinta da tela. Ficava horas nisso, construindo e escavando a superfície das telas que eu trabalhava e o chão do ateliê começava a ficar cada vez mais pantanoso. 

A: Você pintava muito?

D: O dia todo. Principalmente a partir de 85, quando saí do banco. 

A: Com a Bienal? Com o convite da Bienal?

D: É, me dei conta que não precisava mais trabalhar em outra coisa. 

A: A “Como Vai Você, Geração 80?” (exposição organizada no Parque Laje) aconteceu em 84, não foi?

D: Foi, e, para ela, eu pensei: “vou colocar um trabalho no centro do prédio”. E fiz um Sansão monumental derrubando as colunas do Parque — que era uma maneira de interagir com o espaço, uma escola de arte. Uma pintura plana, feita em um plástico laranja com tinta preta e branca. Acho que, talvez, tivesse um pouco de vermelho. O interessante, também, é que, naquela época, já tinha um grupo de artistas que estava no mercado, que estava expondo. 

A: Quem? O Pizarro?

D: Não. O Thomas Cohn fez uma galeria e, logo na terceira exposição, rompeu com o grupo de artistas que apoiava. A partir daí, ele fez uma exposição com o Leonilson. Junto com o Léo vieram o Ciro Cozzolino, Leda Catunda, Sergio Romagnolo e o (Hilton) Berredo. Todos eles participaram da “Como Vai Você, Geração 80?” já patrocinados pelo Thomas, que escolheu uma sala separada e os colocou lá — o que eu acho que foi um equívoco. Foi ruim para eles porque viraram artistas de galeria e, como tal, foram mostrados de uma maneira que, talvez, não fosse a proposta da exposição. Eu não estava nesse grupo, o Thomas não gostava do que eu fazia e, na verdade, não tinha muito “o que eu fazia”, porque afinal eu estava começando. Da “Como vai você?” fui para a Bienal. A curadora era a Sheila Leirner.

 A: A Sheila foi ao seu ateliê?

D: Ela deve ter ido. Todo mundo vinha, o Frederico Morais, o Roberto Pontual, o Marcus Lontra, o Casimiro (Xavier de Mendonça). O João Manuel Satamini fez uma galeria em São Paulo, trabalhando com a Casa 7 e com a gente — eu, o Pizarro e o Venosa. Ele era muito empreendedor; era jovem e queria mostrar e vender arte para a geração dele. Mas depois da Bienal houve um momento em que eu fiquei bem perdido. Pensava no trabalho o tempo todo. Em 87 eu estava patinando mesmo.

 A: Mas o próprio contexto com a Bienal que você participou teve a ver com isso — tinha muita gente boa lá, grandes nomes. A Bienal não deu, assim, um tremor? Como é que foi isso?

D: Não, nesse aspecto eu tinha uma arrogância, típica de “newcomer”, que garantia que essas coisas não atrapalhassem. Por mais lucidez que tivesse de que aquilo era um momento importante, tinha um certo deslumbramento com a situação.

 A: Você estava no centro da cena, não é? Você e a Leda. Você aqui, a Leda em São Paulo, talvez os mais incensados pela mídia.

D: E o Léo (Leonilson). O legal é que fiquei muito amigo do Léo. No início, vi o Léo nos jornais, a primeira exposição dele na Thomas Cohn e na Luisa Strina (galerias de arte). Saiu matéria em todos os cantos: Veja, Isto é, Folha, JB, como um grande artista chegando. Eu gostava do trabalho, e fiquei amigo dele logo depois. A primeira vez que o vi foi na porta da Galeria Thomas Cohn, na sua primeira exposição. Voltando à relação com a mídia e com o próprio meio, de certa forma, tirando as pessoas com quem já convivia, não conhecia e nem conheci muitos artistas. Não sou aquele artista que começou a se aproximar da arte porque na casa dos pais tinha um sarau artístico, ou o pai é um poeta, ou um colecionador, um mecenas. Não cheguei nem perto dessa situação. Acho que, de uma certa forma, podia haver uma certa animosidade com esse pessoal que me via como um intruso, mas eu não ligava muito. Achava que estava fazendo parte de um grupo legal, responsável pela arte daquele momento. Ao mesmo tempo em que tinha consciência de que tudo aquilo — toda aquela festa da mídia — parecia muito precária, na verdade, eu estava contente e tinha certa capacidade de não ficar inseguro com a situação. No fundo, o maior cobrador de mim sou eu. Mas em 87, bateu uma crise, na qual se misturavam as dificuldades que eu vinha enfrentando com enxaquecas permanentes causadas pela tinta — tinta a óleo, principalmente — além de outras coisas. O ateliê era uma coisa insalubre, completamente diferente do ateliê do tempo em que usava água e acrílica. Agora, tinha a tinta a óleo que era um veneno e comecei a ter enxaquecas. 

A: E sempre com grande quantidade de tinta, grandes formatos.

D: E trabalhando 10, 12 horas por dia. 

A: E esse ateliê era com quem?

D: Era aqui do outro lado da rua com o Pizarro, o Ângelo e o João Magalhães.

A: E, pelo menos você, Pizarro e Ângelo estavam acontecendo junto à crítica e ao meio como um todo?

D: É. Era muito interessante.

 A: O Ângelo, o mais filosófico de todos.

D: Acho que, nesse aspecto do ceticismo, o Ângelo sou eu piorado. Porque acho que as pessoas precisam se iludir um pouco para fazer esse tipo de trabalho, que é um trabalho movido por um ideal — você tem que estar um pouco fora do estado de consciência. Passo muito tempo aqui no ateliê, nesse espaço. Antigamente, nessa época sobre a qual estou falando, eu ficava mais ainda, hoje tenho o divórcio, os filhos, um mundo fora que me tira um pouco daqui.

 A: Naquela altura você só tinha isso.

D: Só isso.

A: E a vontade de acontecer.

D: E uma certa diversão, que era ótimo. Mas havia também um esforço e uma angústia que eu não entendia muito bem, porque a angústia não era mais o estado natural do artista naquele momento, principalmente na arte norte-americana. A angústia era uma coisa anterior: o Bonito Oliva (crítico e curador italiano, responsável pela elaboração teórica do grupo conhecido como Transvanguarda), perguntou numa entrevista nessa mesma época, porque os artistas não se suicidavam mais. Ao mesmo tempo me perguntava quem é que estava do outro lado daquilo tudo, quem movimentava, adquiria e usufruía das obras que nós estávamos produzindo. Aos poucos, na medida em que convivia mais com a galeria, fui conhecendo quem comprava esses trabalhos e fiquei assustado, mas minha angústia nada tinha a ver com o fato, era um problema. Por isso, desde o começo, achei extremamente saudável o papel da galeria.

 A: A galeria aqui era quem?

D: O Thomas. Somos amigos até hoje; o João morreu, mas o Thomas está aí. Acho o papel da galeria fundamental. Gosto de certo isolamento que ela me propicia. Também não tenho o menor problema em considerar o aspecto comercial desse trabalho. Comercial no sentido em que estou fazendo uma coisa e essa coisa será vendida e, por causa disso, vou poder viajar, mandar meu filho estudar numa escola legal e principalmente poder continuar pintando. Esse aspecto comercial não tem nada a ver com o impulso que me levou a começar a fazer isso. Acho que seria infeliz fazendo uma outra coisa.

 A: É, mas você vai entrando cada vez mais e vai percebendo que é mais complexo, principalmente quando você vai para fora do país. Aliás, ocorre­-me que depois que você começou a ir para fora, participar de exposições no exterior, começou a perceber que existia certa expectativa sobre a arte brasileira, não é? Algo assim como, vamos ver o que os brasileiros estão fazendo, quem são os brasileiros? Mas aí o seu trabalho quer escapar desse endereço, que é quase geográfico, politicamente correto. É nesse sentido que você percebe que existe um mundo muito complexo. Quando é que você começa a se dar conta disso? Que é sofisticado, que é difícil enfrentar esse mundo da arte, que não dá para você ficar simplesmente pegando o Lüpertz porque, enfim, é uma coisa logo descoberta?

D: Posso dizer que, nos anos oitenta, estávamos ainda lidando com um tipo de curadoria mais perscrutadora, investigativa. Logo depois, nos anos 90, o curador estrangeiro que chegava aqui, muitas vezes ligado a uma galeria, já vinha com um projeto pessoal mais armado. Eu participei de algumas exposições que propunham pensar a arte brasileira e a sensação é de que eram curadorias generosas, menos armadas por uma situação de mercado. lndependente disso, estava mais envolvido com o que fazer com a minha pintura. Buscava uma relevância. Na verdade, peguei o Lüpertz, como antes havia feito com o Bacon, porque ambos são artistas em que a imagem está mediando uma ideia; uma tentativa de lidar com o mistério, com as coisas não reveladas que a gente vai morrer sem saber. Acho que esses artistas, o Bacon mais, usam a pintura para contar sua própria história. Antes disso, para te dizer como eu já estava interessado nessas questões, comecei a fazer um filme com um amigo meu, Salomão, que hoje é um economista. Era a partir de uma história do Fernando Pessoa, uma obra em prosa, uma das poucas — “Marinheiro” —, onde três mulheres ficam velando uma quarta. Tem uma conversa entre elas muito bonita, mas o clima é de uma grande tensão onde nada acontece. Pois bem, a gente resolveu fazer o filme em Super 8 e, quando estávamos fazendo o roteiro, eu, que tinha um vaso chinês na minha casa, falei: “Salomão, a gente põe a imagem desse vaso chinês”. E ele falou: “por quê?”. Aí acabou o filme. Não fizemos, eu não sabia explicar. Queria colocar a imagem do vaso chinês, mas não sabia explicar. De certa forma, eu já tinha essa vontade de falar alguma coisa antes mesmo da pintura e talvez, na hora em que a encontrei, pensei que podia fazer aquilo sozinho, que naquele território eu não ia precisar conversar com Salomão. A pintura é uma atividade solitária; cinema é complicado. Adoraria poder fazer cinema, mas aqui no meu ateliê o processo está mais sob o meu domínio.

 A: E se você fosse dirigir sozinho também poderia colocar o vaso, mas fazendo em dupla…

D: É, mas, aqui, eu posso treinar muito e jogar fora depois.

 A: Tem esse dado, tem uma base técnica, é mais barato, está mais no seu controle, mais na sua escala. Não é cinema, arquitetura.

D: E tem uma coisa linda, que eu acho, que é o sujeito fazer marcas numa superfície da mesma forma que alguém, há muito tempo atrás, fazia. No fundo, a minha maneira de trabalhar é semelhante a do xamã lá das cavernas. E já que o meu problema é uma coisa tão antiga, essa ideia de usar uma mídia perene é interessante.

 A: E essa noção temporal que está muito presente no seu trabalho, também justifica os tons sempre rebaixados, o terra, o branco e preto, não é? E tem também o fato de você roubar imagens e texturas de outras superfícies, o que também significa roubar o tempo de outras coisas. É frequente no seu trabalho uma coloração de pátina, de coisa antiga. No geral, não acontecem tons explosivos, sedutores, algo mais confortável para o olho. Você não oferece um vermelho, um laranja.

D: Não, não é, é sempre rebaixado.

A: Isso entra por onde? Não só as cores rebaixadas, mas também a tendência ao monocromático. Porque o monocromático é uma homogeneização. Às vezes, você usa o prata, não se pode dizer que seja uma coisa antiga; de qualquer maneira tem aí um dado de homogeneização.

D: Prata foi um momento. As pinturas prateadas são, quase, como uma pintura de uma fotografia. É que, para mim, não bastava mais apenas representar algo. lsso é uma coisa que me ficou clara no fim dos anos oitenta. As minhas telas se tornaram a coisa propriamente dita, o objeto propriamente dito. lsso é um desejo que aflorou em 87, 88, comecei a pensar a tela como um registro da minha presença, ou registro de presença de qualquer coisa. A tela passa a ser um objeto ativo, não só um espaço para representação onde você vai pintar uma coisa sem perceber a matéria que está ali. Eu queria dar uma relevância de objeto àquela matéria. Acho que, em termos cromáticos, isso limita a tela para as cores de onde essa tela vem. Foi quando comecei a imprimir a tela.

 A: Como veio essa coisa de empregar processos de impressão na pintura?

D: Ah, isso foi um acidente. Eu tinha sido convidado a participar de uma exposição coletiva em Paris, uma exposição brasileira no Museu de Arte Moderna de Paris. Paralelamente, havia uma exposição em um outro espaço, dessas que não têm verba. Você ganhava a passagem e levava o trabalho debaixo do braço. Eu pensei em fazer telas muito grandes e comprei um rolo de tecido. Preparei as telas no chão, que era o chão impregnado do meu ateliê, e na hora em que tirei a tela, o lado que estava contra o chão parecia uma tela minha, até porque era o material que eu retirava das minhas pinturas que estava naquele chão. Naquela época também, eu estava fazendo o cenário de uma peça que terminou sendo censurada justamente por causa do cenário. Era o Sudário de Cristo, isto é, uma imagem do Sudário, na verdade o negativo dele porque o Sudário é um pano em que você não vê nada, o que a gente conhece é o negativo. Fiz como se fosse uma foto de delegacia, o rosto do Cristo está de frente e de perfil — por isso a peça foi censurada pelo dono do teatro. Mas a idéia do Sudário se relacionava com aquela impressão do chão. Eu tinha um amigo, o Rubem Breitman, que me gozava dizendo que eu era um “fundeiro”, isto porque essas monotipias resultavam em fundos muito bonitos. A partir daqueles “fundos”, eu realmente passei a ter problemas. lsso foi o começo dessa solução mais terrosa, ligada ao ambiente, às coisas que estavam em volta. Então de 87/88 em diante, meu problema passou a ser incluir no meu repertório de pintura essa impressão retirada do chão. Continuei trabalhando nas duas superfícies, enquanto trabalhava em um lado o outro estava sofrendo alguma coisa, algo estava se colando no verso. Depois de certo tempo, eu virava. Aliás, outro dia, o Moacir achou um quadro meu que tinha exatamente essa característica.

 A: Moacir dos Anjos (curador do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, de Recife)?

D: Ele mesmo, que também anda trabalhando com a coleção do Marcantônio Vilaça (dono da Galeria Fortes & Vilaça, São Paulo, falecido em 2000). Ligou-me um dia desses para falar de um quadro, dizendo “que tinha algumas coisas escritas nele”. Eu não lembrava de nada escrito na frente da tela, enquanto que ele me garantia: “está aqui”. Eu: “manda uma foto”. E ele mandou uma foto do quadro. Aí falei: “olha, Moacir, o quadro está do outro lado”. Ou seja, ele mandou a foto da parte de trás do quadro.

A: Esse processo também não remete aos surrealistas? Max Ernst com a frottageAndré Masson pintando com areia, como também àquela história do “ver-em”, da mancha que nos estimula a colocar o olho para trabalhar?

D: É, inclusive o Max Ernst está no meu panteão…

 A: Tá?

D: Tá. Eu o considero um artista referencial. Aliás, um dos artistas que mais gosto é o Sigmar Polke, e, para mim, o pai dele é o Max Ernst. Sabe, essa diversidade de atitudes e até uma ironia, que é uma coisa que eu não tenho assim explícita. Mas, embora, pudesse haver esse aspecto surrealista, minhas pinturas tinham elementos mais românticos. Até porque as imagens eram próximas de pinturas sacras; não que a referência fosse exclusivamente essa, mas ao final tinha certa aura, algo próximo a paramentos religiosos ou ambientes místicos.

 A: Sim. Mas, ao mesmo tempo, existe uma carga irônica nisso. lrônica no sentido de deslocamento, porque ao mesmo tempo em que joga a discussão para um lado metafísico, você dá materialidade à pintura, transforma-a em objeto. É como se você estivesse dizendo: “isso aqui é discurso, isso aqui eu faço e faço desse jeito e isso aqui tem uma vida própria”.

D: É.

 A: Porque se fosse só fazer um dado religioso, talvez caísse numa direção como a do Ross Bleckner, com aquelas grandes abóbadas, grandes superfícies escuras pontuadas por luzes. O Bleckner é, decididamente, mais metafísico, enquanto você, até porque sublinha matéria e objetos, não.

D: É, o fato é que ao mesmo tempo que tinha as imagens, eu lidava com o que achava que a pintura tinha que ser; pensava em como ela deveria funcionar para uma pessoa hoje. Quanto a isso, houve um momento importante em que embaralhei o procedimento: foi quando fiz as impressões de pregos com a finalidade de representar… pregos. Com isso as marcas, os resíduos de ferrugem deixados pelos pregos eram simultaneamente objeto e imagem. Essa passagem foi importante para que eu tivesse mais claro como fazer para separar as coisas. Mas há também o fato de que não espero, nunca esperei, que uma pintura tivesse uma leitura só, onde não existe espaço para o devaneio, ou quando há uma proposição tão forte que o resto fica secundário. Eu sempre quis resultados menos conclusivos. Esse momento coincidiu com o início de um período onde eu tinha mais paciência, no qual comecei a colar e descolar coisas no chão, em que usava a tela para contar algumas histórias; às vezes, usava referências fragmentadas de outras pinturas ou pedaços de objetos. Tudo isso gira em torno da ideia de trabalhar com as sobras, com os fragmentos.

 A: É, os fragmentos do chão são seus também, não é? Isto é, você recolhe o resultado e adiciona à sua pintura sobras do seu próprio processo?

D: Naquela época era. Mas acontece que o ateliê tinha uma parte externa e, então, fiz um quadro a partir das folhas caídas no chão. lmprimi as folhas e, depois, pintei sobre elas.

A: E que outro artista você via nessa altura? Internacional, até porque, aqui no Brasil, você estava num caminho solitário, não é?

D: Olha, não sei, não me lembro para quem eu olhava. Quanto ao Brasil, tem alguns artistas que gosto, mas cujos trabalhos são muito diferentes do meu. lsso é curioso, posso gostar muito de coisas que jamais faria. Por exemplo, gostava muito do Leonilson, principalmente no final e, infelizmente, ele ficou melhor ainda depois que ficou doente. Também gostava do Nelson Leirner, da Leda Catunda, da Ana Tavares. Não haviam muitos pintores por aqui. Nesse caso era melhor olhar para o exterior mesmo. Nesse caso, olhava para o Polke como já disse, Kippenberger, Ed Ruscha, Peter Halley, para ficar nos pintores. 

A: A pintura dele é muito cheia de referência, não é? De Kooning e, é claro, Picasso e Matisse, ele sabia muito de pintura, era evidente que havia estudado o assunto em profundidade.

D: E faz uma ponte entre o contemporâneo e o moderno, que é uma coisa que o Lüpertz faz também. Você olha o Lüpertz e percebe “Picasso está aí”, muito presente, mas, ainda assim, ele não é um pintor moderno. Tinha também o Casimiro, que era uma figura. Havia algumas pessoas com quem eu me comunicava mais. Com o Paulo (Herkenhoff) também sempre teve conversa. E tinha, também, os meus amigos. Conversava um pouco com Ângelo, falávamos sobre arte, mas nunca se falava muito. A gente teve uma convivência baseada em um olhar o trabalho do outro. Um dos meus trabalhos que acho mais importante é aquele em que pego uma sobra de madeira do Ângelo, uma sobra dos objetos e das esculturas que ele fazia. Ora, uma sobra é um registro de uma coisa que saiu de lá do trabalho dele; uma presença, o contorno externo, um negativo de uma coisa que ele usou, e aquilo foi meu tema no quadro. lsso veio do nosso convívio.

 A: Isso aconteceu na época que vocês dividiam o ateliê?

D: Sim.

 A: Até quando vocês dividiram o ateliê?

D: Bom… nos fomos despejados pelo Breitman. Ele era o proprietário da casa onde trabalhávamos. Eu tive uma discussão com o João Manuel, que era sócio do Breitman, e eles despejaram a gente. Acho que foi em 90. Aí, meio que cada um foi pra um lado: o Luis e o Ângelo foram para um ateliê aqui perto, na Lapa — para onde eu acabei indo depois. Fiquei uns meses lá, enquanto estava fazendo este aqui, em que nós estamos agora. 

A: Você tem esse ateliê desde o começo?

D: Desde 93…. 92. 

A: Precisa crescer, né?

D: Estou vendo uma casa aqui do lado. É, está apertado. 

A: Está apertado.

D: Em 92 a gente se separou. Também eu já estava cansado de trabalhar em grupo.

A: E as viagens para fora…, começaram a ser cada vez mais sistemáticas? Quando é que você começa a viajar pra fora bastante?

D: Nos anos 80.

 A: Anos 80, 87, por aí?

D: 85. Eu nunca tinha ido à Europa até então.

 A: Você começou a ganhar dinheiro?

D: Não. Eu comecei a ganhar dinheiro nos anos 90. Acho que precisei ganhar dinheiro porque tinha uma família e uma família complicada, pois minha mulher (Daniel foi casado com a artista Courtney Smith) não era brasileira, era americana. Eu tinha que viajar e gostava dessa ideia de viajar. Aprendi muito por conviver com a cultura dela. Mas quando a conheci eu não tinha muito dinheiro, não é que eu tenha agora, mas eu tinha uma coisa muito simples – morava num apartamento quase sem móveis, e ia desse jeito. O Leo também, o Leo vendia um quadro e ia pra Europa gastar o dinheiro, voltava e fazia um outro trabalho. Engraçado, mas nessa época existia ainda uma coisa mais romântica, se compararmos ao que aconteceu nos anos 90. 

A: Que aconteceu nos anos 90, aqui?

D: O artista parecia mais profissional. No período em que comecei, não se usava a palavra curador. O curador era… não era, não tinha muito. Existia o crítico. E ele era, por assim dizer, menos ativo que o curador. O curador se coloca também como um autor.

 A: E a maneira dele difundir o trabalho é, digamos, muito mais expandida do que o trabalho crítico. Porque o trabalho de um crítico é pontual, acontece na imprensa e não necessariamente na grande imprensa, mas em revistas especializadas, dirigidas para um público muito mais restrito. Exposição já é mídia em grande escala, exposição já tem uma veiculação de outra ordem. Em suma, o curador tem mais poder do que o crítico, não é?

D: É, e o objeto do crítico é óbvio: o trabalho do artista. Enquanto que o objeto do curador é uma questão pessoal dele.

 A: Ah, sim, tem isso. Mas também é preciso dizer que têm curadores e curadores, curadores que aparecem menos e curadores que aparecem mais. Sem dúvida. Não sei se você concorda, mas no Brasil dos anos 90 aconteceu o que aconteceu nos Estados Unidos dos anos 80. No Brasil, até os anos 90, você não tinha mercado. Se você não tinha mercado, para quem você fazia o trabalho? Você fazia o trabalho para você mesmo, é claro, e para as pessoas com quem você tinha uma relação, que você queria escutar, esses eram os seus alvos. Agora, nos anos 90, você já faz pensando no mercado, você não está muito preocupado com o crítico. Fica mais preocupado com a recepção que o trabalho vai ter dentro do mercado, o que, por um lado, é uma maneira de falar que o cara ficou mais profissional. E o próprio crítico meio que vai virar curador também, até porque como crítico ele perdeu espaço, ficou alijado de uma mídia mais e mais interessada no comércio de informações. Quer dizer, não existiu na sua trajetória uma relação da mesma natureza daquela que, sei lá, Greenberg estabeleceu com Pollock, Ferreira Gullar e Mário Pedrosa com Lygia Cark e Helio Oiticica, não é? Nos anos 90, não tem mais o cara fazendo trabalho pro crítico ou sendo acompanhado por ele?

D: Não. Isso é um fato do alto modernismo. Quando comecei, existia uma autonomia maior entre esses personagens. Você era amigo do crítico e o crítico se dedicava a olhar o seu trabalho. Mas não havia mais uma coisa equivalente ao movimento do período moderno. Aqui, nos anos 90, principalmente a partir do momento que o Marcantônio fez a galeria, começou a rolar um tipo de associação, um time, uma equipe. O galerista, o crítico, o curador e o artista se articulam em torno da obra desse último e/ou de um projeto do curador. Isso não acontecia nos anos 80. Por mais que fossemos considerados artistas comerciais. E olha que quando o Leo apareceu, o Thomas colocou lá em cima o preço dele, não sei quantos mil dólares pelos desenhinhos dele. O Leo não ficou chateado, mas o pessoal perguntou: “como é que pode um cara de vinte e poucos anos ser mais caro que um artista mais rodado e que está há mais tempo na luta?”.

 A: Bom, em São Paulo rolou muito ressentimento da geração mais velha em relação a mais nova. Aqui também teve um ressentimento?

D: Teve sim. E isso porque nós éramos considerados comerciais, às vezes, puramente comerciais…

 A: Não o eram ainda. Ao menos na escala em que isso chegaria.

D: O que veio depois foi mais organizado em termos comerciais. 

A: Nesse sentido, você acha que o Marcantônio teve uma importância decisiva?

D: Eu acho que sim. Ele introduziu aqui esse tipo de profissionalização que tem bons e maus aspectos. lsso é uma coisa que vem dos Estados Unidos, do boom econômico ocorrido depois da Segunda Guerra, do florescimento de escolas de arte onde não só você vai estudar arte como vai se formar para ser artista, o que é quase um contrassenso. Eu acho que o Marcantônio foi o cara. Embora o Thomas tenha feito um trabalho incrível, ele é muito mais individualista nesse aspecto. O Marcantônio agregava uma equipe em torno dele — uma equipe formada por críticos, curadores e artistas.

 A: E rodava pelo mundo com a preocupação inclusive institucional, muito forte no sentido de divulgar os artistas em museus, porque também…

D: lsso garantia um bom retorno de mídia para ele.

 A: Deu um retorno bom para ele porque, também, a visão que ele tinha do processo era, digamos, bastante aperfeiçoada, mais avançada.

D: É. Mas o curioso é que muita gente deste período morreu precocemente, o que serviu para deixar um hiato, um buraco de comunicação entre a geração da gente e a geração anterior. A gente já sofria uma “descontinuidade”, até pelo fato de não nos referenciarmos ao pessoal pertencente ao período anterior. Desconhecíamos mesmo o que eles haviam feito. Eu acho que, em São Paulo, era diferente, certo?

 A: Em que sentido você está falando? Desconhecimento da geração imediatamente anterior?

D: É.

 A: Em São Paulo, era diferente porque o Nelson (Leirner), o Carlos (Fajardo), a Carmela (Gross), a Regina (Silveira), o Júlio (Plaza) davam aulas na FAAP, ou em seus ateliês, o que serviu para aproximá-­los daqueles que vinham chegando. Ficou conhecido o episódio em que o Sergio Romagnolo, quando chegou ao Rio para participar da “Como Vai Você, Geração 80?”, junto com a Leda Catunda, o Sergio Niculitchef e o Ciro Cozzolino, reagiu contra um certo repúdio que pairava no ar contra a geração mais velha — Waltercio (Caldas), Cildo (Meireles), Tunga etc —, acusada de ser muito cerebral, dizendo que não, que eles eram alunos dos caras citados, artistas cujas obras eles apreciavam. Por outro lado, aqui no Rio, Waltercio, Cildo e Tunga não davam aulas e não tinham um lugar onde pudessem estabelecer contato.

D: É verdade. Em primeiro lugar, os caras não davam aula. Os artistas dos anos 70 foram muito limitados pelas circunstâncias. Para começar, não usufruíram de um sistema de galerias. Os anos 80 beneficiaram todo mundo; antes deles, os críticos desses artistas eram muito poucos e mais locais. Havia gente da envergadura de um Ronaldo Brito, mas que escrevia num jornal de circulação restrita (nos anos 70, Ronaldo Brito foi crítico de arte do semanário “Opinião”).

 A: E o Paulo Sérgio Duarte?

D: Naquela época, o Paulo Sérgio estava na Europa. Quando o conheci, ele estava envolvido parece que com educação.

 A: Mas ele estava na Funarte no começo dos anos 80.

D: Não lembro de ele estar escrevendo alguma coisa nos anos 80. E o que a gente estava fazendo — o Ângelo, o Pizarro, a Leda, o Leo — não tinha nada a ver com o que era ministrado pelo Ronaldo Brito. Eu acho que rolou mesmo um desinteresse total da parte dele. Faltou uma atitude básica: sentar e conversar. Quando isso não acontece — e, realmente, não aconteceu — pode gerar um desentendimento daqueles que duram a vida toda. Eu, bem cedo, meio que desencanei da ideia de um relacionamento próximo com esses caras.

 A: Até porque alguns deles — à exceção do Paulo Sergio, que o convidou para a Bienal do Mercosul — não viam sentido no que você fazia.

D: Tinha também o fato de que o mundo já não acabava em Ipanema. Talvez o olhar do artista dos anos 80 estivesse mais voltado para fora do que para dentro. Era mais fácil acessar a informação; tudo que rolava já estava quase online na vida da gente. Uma das razões pelas quais o Helio Oiticica ficou mais potente foi o fato dele começar a ser visto no exterior a partir dos anos oitenta. As ideias foram amplificadas e encontraram quem pensasse nelas. A influência do exterior serve também para reforçar as coisas que a gente tem aqui.

 A: A retrospectiva dele é dos 90, mais precisamente de 1992. E ela começou a nascer na mostra do PSI, em Nova Iorque, em 1988. Lembra daquele artigo do Guy Brett (“Helio Oiticica: reverie and revolt”), capa da “Art in America” de janeiro de 89, que nasceu dessa exposição do PSI? Para você ver, o Chris Dercon era o curador do PSI naquela altura e ele terminou sendo um dos cocuradores da retrospectiva do Helio. Aliás, ela começou no Witte de With, de Roterdam, instituição que o Dercon assumiu depois de sair do PSI. A partir daí, a reputação do Helio só vem crescendo. E, é claro, que quando penso no número de pessoas das gerações seguintes que, graças a a isso, tomaram conhecimento do Helio, penso particularmente no Ernesto Neto, que se conecta com a discussão do “penetrável”. Vocês mesmos, anteriores ao Neto, estão fora dessa revisitação das gerações anteriores.

D: É verdade. O Frederico Morais foi, talvez, quem tenha feito a maior resenha sobre os anos Ele virou uma referência para todos, até porque escrevia regularmente através da coluna semanal que tinha no jornal. Embora já tendo dito que a vocação da arte brasileira era a construção, tinha interesse no que estava acontecendo.

 A: Ah, estava muito atento. Ele saúda vocês, chega a declarar que achava um saco aquilo que vinha antes. Embora sempre tenha mantido uma forte relação com o Cildo Meireles, chega a dar um basta ao cerebralismo. Ficou meio evidente que o alvo dele era o Waltercio Caldas e os artistas “herméticos e excessivamente intelectuais dos anos 70” (“Gute Nacht Herr Baselitz ou Helio Oiticica onde está você”, catálogo da mostra “Como Vai Você, Geração 80?”). O efeito colateral dessa posição, por outro lado, foi enfiar todos vocês na chave do binômio pintura/prazer, o que é uma visão simplificadora. Bem, quem sabe, se nos meados dos anos 80 fosse só isso mesmo?

D: Na verdade, é possível você classificar a maioria desse jeito. Como em qualquer grupo geracional que tem mais baixos do que altos. Seja como for, a posição do Frederico e da mídia mais próxima a ele forjou essa impressão simplificadora sobre os anos 80 no Brasil. Mas, a meu ver, o maior problema é que, ao contrário do que aconteceu em outras épocas, essa geração não produziu um autor que tenha escrito sobre ela. E o que vem depois, já nos anos 90, vem sob a forma daquela articulação que descrevi mais atrás entre marchands, críticos, curadores e artistas. O fato é que o mercado no exterior expandiu demais e começou a consumir a periferia. É por isso, por exemplo, que houve um momento em que rolou um estranho interesse por arte aborígine australiana. Depois, foi a arte latino-americana, mais recentemente a arte asiática. O problema é que os tempos são outros. É como se a arte de hoje tivesse de responder de forma mais direta ao consumidor. Com isso, acho que ela perde um pouco sua autonomia. Hoje, existe uma estrutura de arte muito inchada, muito grande no mundo todo, com um número infinito de artistas procurando um lugar ao sol. Disso decorre uma padronização mais forte e uma determinação do que pode ou não pode ser feito. Tanto pior se você é um artista da periferia. Nesse sentido, a bela exceção é o Cildo Meireles, cuja obra consegue sair e retorna para cá com prestígio.

 A: Como prova disso basta lembrar que o livro dele, publicado pela Cosac &Naify, é uma versão traduzida do livro da Phaidon. Ou seja, praticamente não há nenhum livro sobre o Cildo feito no Brasil. O melhor livro dele foi feito lá fora.

D: E acho que ele é um cara que tem um tipo de trabalho menos classificável. Ele tem um território mais pessoal. Por isso, o acho uma exceção. Em termos gerais, a arte hoje é mais um grande negócio.

A: Talvez seja apenas um problema de escala.

D: Não sei.

A: É só você ver, por exemplo, como o Baxandall — um interessante historiador da arte — discorre sobre os contratos dos artistas no Renascimento. Michelangelo, para ficar num só nome, sabia fazer contratos como ninguém. Computava tudo, da tinta que estava gastando aos assistentes. E isso é com todos. Ser pintor da corte, caso de Velásquez, Rubens e Goya, era um grande negócio; estavam completamente comprometidos com as cortes as quais serviam — o que não os impediu de serem grandes artistas. O problema, hoje, talvez seja de escala, uma escala que é tremenda. Mas me parece que tem muita gente fazendo trabalho de qualidade.

D: Claro. Tem. Mas acho que na época da realeza os pintores da corte, que eram poucos, eram fora do comum no modo como transgrediam — diziam coisas nas entrelinhas. A qualidade de um Caravaggio estava no modo como ele falava para o público, ao mesmo tempo em que driblava a igreja.

 A: É verdade, driblavam mesmo. Velásquez pintando-se ao pintar a família real é uma sacada genial!

D: A sensação que tenho é que, hoje, o excesso de dinheiro termina por se impor aos artistas, leva-os a agir de forma mimética, menos refletida. Talvez fosse importante cultivar mais o isolamento. Nessa dinâmica vem muita gente que atrapalha você, meio que te distrai.

 A: Como? Como que isso atrapalha? Como o incomoda o fato de ter muita gente tentando fazer arte? Considerando que existe um monte de gente que não esteja fazendo coisa de qualidade — que está enganando —, onde isso te atrapalha?

D: Existem várias maneiras de se abordar isso. Talvez o meu ponto de vista seja um pouco romântico. Mas é como se a arte tivesse deslocado suas questões para aspectos que não são intrínsecos a ela. O discurso da arte como que se desloca para problemas sociológicos, antropológicos, quase que a exibição e defesa de bandeiras sociais, situações de grupo… 

A: Eu vejo esse desvio em alguns Coletivos que desenvolvem táticas de ação política alternativa, isso quando não caem em atitudes assistencialistas.

D: Sim, isso acontece com alguns grupos e artistas. Esses temas passam a ter uma relevância em função de uma necessidade externa que demanda da arte um posicionamento, que ela deva dizer alguma coisa que, em princípio, não seria do âmbito dela.

 A: De qualquer maneira, voltando ao seu trabalho, você continua — apesar das circunstâncias, pressões de mercado etc — fiel e coerente aos seus preceitos. Um dos que mais me interessa é a maneira como você articula a imagem com a fisicalidade da tela. Trata­-se de um roubo, não é mesmo? Porque se pode pensar a ideia do decalque, a ideia da monotipia, como uma espécie de roubo: você rapta uma superfície através do seu trabalho e a pintura é a mediação desse rapto. É uma ausência que está lá a partir de vestígios. lsso é uma curiosa articulação que você estabelece entre o espaço pictórico, diante do qual eu estou, e o espaço aludido, diante do qual eu não estou. lsso, de um lado. De outro, tem essa sua capacidade de estabelecer sintaxes entre as coisas mais variadas, porque você, na verdade, estabeleceu uma conexão entre o espaço real com outro espaço que está aludido. E você vive fazendo isso. Por exemplo, quando você faz telas a partir de impressões extraídas de um chão de um espaço que não o do seu atelier. Telas que você realiza aqui dentro do seu atelier. O resultado são, simultaneamente, vestígios, alusões mais vagas, até representações mais explícitas de três espaços. O mesmo acontece quando você realiza no seu atelier, também a partir de material obtido fora dele, reproduções de espaços de telas pertencentes à história da arte. O que temos aqui é uma grande capacidade de articulação. Diante disso, concluo que você reage ao achatamento do mercado propondo o artista como aquele que constrói sintaxes. Então, eu queria que você falasse mais sobre isso. Como é que é essa operação? E nisso, eu vejo uma operação próxima ao Sigmar Polke. A matéria-prima que ele faz uso, os fragmentos de sistemas imagéticos variados entre si na obra dele, como na sua, há uma tentativa de ajuste, de estabelecer uma costura entre códigos que são muito diferentes. E ao falar de código, é metalinguagem. Quando isso começou para você? Você falou, aqui, que uma vez percebi que a tela que levantei do chão contava uma outra história”. lsso aí passou a ser a matéria­-prima com a qual você começou a confeccionar suas pinturas, sobrepor outras coisas?

D: Descrevendo melhor essa passagem, retomando o que já disse lá atrás, quando puxei aquela coisa do chão, vi as minhas tintas que, na época, foram se acumulando sobre ele. Eu percebia que com aquilo eu estava falando de um espaço de ausências, estava falando de pintura e como é que a pintura podia se comportar neste momento. Eu hoje percebo que lido com alguns personagens; é minha fazenda, entende? Tenho uma fazenda com o meu gado. Cada vez que fotografo esse espaço eles estão em uma disposição diferente. É o meu conjunto representativo. Tenho essas coisas boiando no meu caldo, mas não tenho domínio pleno de para onde é que isso está apontando. Quando meu filho nasceu, em 92, eu estava em Nova Iorque, morando lá. Na época pensei: “agora vou ter um filho, não posso mais ficar três meses no ateliê lutando para terminar um trabalho”. Me lembro, era inverno e estávamos viajando de carro e pensei: “vou formalizar meu trabalho, definir textualmente para mim mesmo o que é o meu trabalho”. Enfim, cheguei a alguma coisa que chamei de Sudário-Memória. E, a partir daí, comecei a projetar coisas. Fiz um trabalho específico, mas acabou que nunca o mostrei. É um trabalho bonito no qual não coloco minha mão na sua execução, um trabalho que tem a ver com pintura e com memória, e que expande os limites da definição da linguagem. Mas percebi que, a partir do momento que tinha as coisas tão bem amarradas, passei a correr o risco de perder outras, de não mais descobrir coisas que acontecem durante o processo. Por isso, eu acho que desencanei e guardei esse trabalho. Anos depois comecei a fazer essas colagens com impressões em Nova lorque. Botei os panos nas paredes do ateliê, panos que traziam a impressão do chão de um lugar no Brooklyn. Como eles tinham áreas diferentes, comecei a justapô-los, de modo a sugerir imagens. Pois bem, o Paulo Herkenhoff foi lá no ateliê e viu dois ou três trabalhos que mostravam espaços de museus e eu falei: “Paulo, não sei se esses panos deveriam representar apenas os espaços de onde eles vêm”. E ele falou: “olha, acho que você tem que fazer isso, porque senão você estará jogando esse trabalho no ralo”, mais ou menos isso — foi uma coisa assim “bem leve”. Mesmo assim decidi que não, que não iria apenas representar os lugares de origens das impressões. Porque, a partir do momento que eu amarrasse aquele trabalho ao lugar, estaria perdendo alguma coisa. Mais tarde, representei alguns espaços com os próprios panos desses espaços, como também usei o antigo carpete do museu (MAC Niterói) e o coloquei na própria parede do museu. Em um outro extremo, representei espaços que vi apenas reproduzidos em publicações. Em suma, trabalhei de várias maneiras nessas colagens. Mas no momento em que conversei com o Paulo, a sensação de inconsistência foi muito forte. Embora fosse um comentário relevante, tive uma resistência muito grande. O que pesou para a minha escolha foi o fato de que eu também sou um observador desse processo de trabalho. O que imagino que esteja acontecendo hoje com minha volta para o Brasil é que estou retomando uma forma mais orgânica de trabalhar. A estruturação que desenvolvi nos últimos anos, principalmente ao morar fora, está presente, mas voltei também a vagar pelo ateliê. A estrutura está mais maleável.

 A: Antes de prosseguir comentando a sua produção recente eu queria saber quando é que o trabalho tem um corte, uma modificação? Tem aquele momento em que a tela sobre o chão é levantada, trazendo resíduos. Mas tem um momento, não sei se é o mesmo, quando você fez a Bienal de São Paulo de 1989, que vêm as telas monumentais. E há, depois disso, as telas despojadas, telas nas quais você coloca objetos em cima, para tirá-los ou não. Este é o caso dos pregos, como também dos objetos variados. Como aconteceu isso, de você não jogar tanto com o dado aleatório das manchas? De você mesmo apressar e criar incisões no trabalho que não são imagens que você obtém por casualidade ou por intermédio de um objeto que você gruda?

D: Eu não vejo uma interrupção. Na medida em que o tempo foi passando, fui acrescentando alguns procedimentos que achava relacionados com essa perspectiva de trabalhar com fragmentos ou registros de espaços. Não existe um projeto completamente definindo sobre o que entra ou que não entra, vou testando os limites, achando, às vezes, que algumas coisas foram um pouco além do que queria. A princípio, tudo era mais instável, mas na medida em que fui fazendo as coisas, o território passou a ficar mais claro para mim. Na Bienal de 89, eu colava, descolava o quadro do chão e depois trabalhava, pintava imagens — ainda tinha o pincel — mas não usava muito a cor: era quase um desenho com um pincel. Depois da Bienal, ainda fiquei fazendo aquilo. Na sequência, em 1990, teve a Bienal de Veneza, na qual fiz o mesmo que havia feito em São Paulo só que em escala ainda mais ampliada. Em 92, fiz alguns trabalhos com preguinhos — pinturas que foram importantes para mim. Foi quando comecei a usar a palavra sudário. O prego funcionava muito bem dentro dessa ideia. O sujeito sendo retratado com a sua própria matéria. Fiz também a série de pinturas dos bumerangues, que é um momento síntese do que eu desejava: uma tela contando uma história, a trajetória de um bumerangue e, ao mesmo tempo, trazendo a história da oxidação, do tempo de oxidação do prego, deixando nas telas os resíduos que formam a imagem de uma trajetória. Trata-se de uma outra história do tempo, aquela que o bumerangue descreve até voltar e fechar o circuito de onde partiu. Trata-se também de uma maneira de ver a pintura, a arte em geral, ou mesmo o ciclo da vida. Enfim, uma tela com vários níveis de leitura onde nenhum é predominante. Nessa época, comecei a usar óxido de ferro. Comecei a fazer moldes de óxido de ferro com resina poliuretânica. Esses moldes quebravam, viravam cacos que, de certa forma, também eram resíduos do meu ateliê e que coloquei em outra tela. Nesse período, a impressão do chão do espaço ficou num segundo plano. Mas não houve uma ruptura muito forte. 

A: Mas existe uma mudança de tônica, de foco?

D: Eu acho que à medida que o tempo vai passando vou focando mais, a história vai ficando mais clara para mim, com menos ruído. lsso não é um trabalho com desejo de exatidão, de controle absoluto. O que o meu trabalho propõe é justamente o não conhecimento de todas as instâncias.

A: Sinto que você começou a trabalhar com mais consciência sobre o problema da linguagem. A ideia de você trazer as coisas de dentro do próprio ateliê é juntar tempos distintos na mesma pintura. Quando você conta essa história do prego, seu trabalho começa a propor uma síntese, uma articulação entre sistemas de linguagens distintos. Acho que o foco meio que se alterou, a discussão não me parece mais tanto o tempo, mas, sim, a meditação sobre os diversos sistemas de representação que temos a nossa disposição hoje.

D: Acho que isso é um dos procedimentos da pintura de hoje, ou seja, usar sistemas de representação e notação de ideias variáveis; inclusive, apropriar-se de modelos de representação que não são da alta cultura, mas de outras famílias da expressão visual. Hoje, tanto se pode pegar desenho de quadrinhos quanto desenho de sinalização, tudo pode entrar na pintura.

 A: Está bem, mas com a pintura moderna também não era assim, ao menos parcialmente?

D: Sim. Porém, no modernismo, os sistemas visuais disponíveis eram mais limitados. Mas, desde o início, estabeleci que meu problema seria mediado pela pintura e que, portanto, a pintura teria de se manifestar de uma forma crítica. Não me interessava pela coisa passiva, eu queria algo além de apenas representar. Vejo a pintura como uma superfície não completamente lisa, mas como uma superfície com uma certa aderência, uma certa agressividade. Tudo isso estava presente, mas existia uma inquietação. Sempre que achava uma maneira de fazer as coisas, eu rompia com aquilo depois de um tempo. Era uma tentativa de contar a mesma história mudando tudo, personagens, forma. Não lembro o momento em que decidi fazer o bumerangue com os preguinhos, mas na hora que ficou pronto, ficou claro que aquilo era uma forma muito perto do ideal para mim. Em uma outra tela da mesma época, “O beijo do elo perdido”, que tem uma formação completamente diferente, também obtive essa mesma sensação, sendo que ao invés do prego na superfície, foi o título que garantiu esse resultado de camadas, de eventos, de histórias que acontecem nela.

 A: Isso é uma coisa interessante. O título dá constantemente uma narrativa — ele gruda um tema no trabalho. Porque posso pensar o bumerangue descrever uma rota — rota essa que você não salvou, virtualmente, na memória porque a trajetória dele não deixa marcas por trás. Portanto, o que você faz é um esquema, uma representação do esquema da trajetória do bumerangue. Você materializa essa representação que, inclusive, tem uma tessitura, uma materialidade — porque é um prego enferrujado. É como se você pegasse um desenho mecânico, que é um plano ideal, um modelo de alguma coisa que vai acontecer e desse carne, espessura para aquilo que é esquemático. “O beijo do elo perdido” aproxima-se disso porque o que você tem ali é o infinito, um oito deitado; menos que um esquema, uma notação matemática, abstrata, mas que, ali, está encarnado numa imagem. Sua pintura tem muito disso, o tempo todo ela tem peso, uma superfície crispada, encrespada, texturada, tensa. E essa tensão tem sido, no geral, nos últimos quinze anos, um amálgama de sistemas de notação diferentes, de linguagens diferentes.

D: Os trabalhos que acho que mais representam o que me interessa, poderiam estar tratando de momentos da vida que são descartados, ou seja, são representações das coisas menos representáveis possíveis. Quase como algo que não existe, um tempo sem eventos. lsso é o que há de mais misterioso para mim. Sempre que você vai lembrar de uma coisa, você a associa com uma série de fatos, porém, muitas das coisas pensadas o são num estado de suspensão, de descontinuidade — um espaço onde as coisas acontecem, mas cujo tempo é difícil precisar como se você não tivesse nada dentro dele, só uma sensação. Posso chamar isso de meu tema. Nesse momento, quando você descreve um trabalho meu ou quando o descrevo para mim, quando vejo no livro o que fiz, penso: “é isso, esse é o meu tema”. Mas se eu escrever sobre isso e ler pela manhã, antes de ir para o ateliê, talvez não me ajude em nada. No início, era um pouco difícil eu aceitar a ideia de que fazia uma coisa que aparentemente não tinha um rigor, sobretudo num mundo onde todo mundo passa o tempo todo explicando porque aquilo tem ou não pertinência.

 A: Curioso, não é que você não pense antes de fazer, mas você pensa muito depois de ter feito. Você fica olhando e pensa “olha o que eu fiz”.

D: As pessoas falam: “ah, você faz uma experiência do chão” ou “você trabalha com o aleatório”. Mas o fato é que quando decido que vou fazer aquilo, sou eu quem controla o processo. Com isso quero dizer que enquanto faço, também estou aferindo. 

A: Aferindo ou afirmando?

D: Checando. Aferindo. Se bem que hoje, anos 2000 — depois que fui para Nova Iorque —, mudei um pouco a atitude, comecei a trabalhar em série. 

A: Antes de passar para Nova Iorque, que foi um momento particularmente muito importante, gostaria de trazer para agora aquela minha pergunta sobre sua relação com o meio: você se sente muito sozinho? Seu trabalho artístico é isolado? Além disso, gostaria de saber se você percebe pessoas cujas poéticas têm ponto de contato com o seu caminho?

D: Não. Aqui no Brasil, não.

 A: E como você sente a recepção do seu trabalho aqui no Brasil? É melhor por parte de críticos?

D: Não sei, porque, mas, às vezes, tenho a sensação, talvez por estar no centro da minha história, de que sou o pior observador sobre isto. Seja como for, tenho a impressão de que o meu trabalho não é muito visto.

 A: Você não se acha visto?! Você é um dos caras mais conhecidos, senão o mais conhecido da sua geração. Pode ser que o seu trabalho não seja bem visto, bem analisado, mas apresentado?

D: Bem, muito… muito visto não é. Porque eu faço uma exposição por ano, a cada dois anos em São Paulo, uma a cada dois anos no Rio. Exposições em museus são menos frequentes ainda. O público que vai nessas exposições é sempre muito pequeno. Têm trabalhos que vão para a galeria e de lá vão para a casa de alguém — trabalhos que nunca mais serão vistos, trabalhos importantes para mim. Têm trabalhos que eu desejaria rever, gostaria que eles tivessem num lugar acessível, num museu. Quer dizer, acho que veem pouco e acho que tem também o seguinte, o artista, eu, pelo menos agora, estou sempre pensando daqui para frente. Com isso, trago uma inclinação de descartar uns momentos anteriores. E isso não existe para o público. Vou à Pinacoteca, em São Paulo, e encontro um quadro meu de 89. Revejo aquele quadro, gosto. Mas queria que tivesse lá também um quadro de agora, para mostrar o que está acontecendo nesse momento. Tenho a sensação de que são pouquíssimos os artistas brasileiros cuja obra atual o público conhece. Estou falando do público especializado, porque o público mais genérico, aí…

 A: O público consome o nome.

D: Eu acho que pouca gente vê o que eu faço, mesmo entre as pessoas especializadas em arte.

 A: A mudança para Nova Iorque aumentou muito o seu repertório. Você pôde assistir mais sistematicamente, exibições, shows, mesmo palestras, acompanhar mais a vida artística. Como foi isso? Deu um ganho, serviu para maturar as tuas posições?

D: Em Nova Iorque eu tinha uma vida mais familiar.

A: Mas você viu muita exposição, muito mais do que teria visto aqui, ou não?

D: Sabe que é curioso, quando você mora num lugar você perde mais coisas do que quando você vai visitar o lugar. E antes eu já ia para lá algumas vezes ao ano.

A: Compreendo.

D: Por exemplo, perco exposições no Rio porque fico adiando a visita e uma hora aquilo acaba. Quando eu viajava para Nova Iorque, o que passou a acontecer depois que eu conheci minha ex-muIher, vi quase todas as bienais do Whitney, todas as principais retrospectivas do Moma, Guggenheim etc. Eu vou para Nova Iorque praticamente todo mês, dou uma volta pelas galerias. Mas com a minha mudança para lá, a convivência com artistas ficou ainda mais restrita. Já não tinha esse hábito aqui no Brasil de sair e agregar, procurar pessoas do meio. Quer dizer, tem os que naturalmente acontecem, os meus amigos e tal. E em Nova Iorque é “networking” — as pessoas se encontram para tratar de como é que elas vão adiante com as carreiras delas.

 A: Mas você não fez parte disso?

D: Não. Depois de seis meses em Nova Iorque me dei conta do meu isolamento. Eu tinha um ateliê enorme onde ficava trabalhando e, no final do dia, ia para casa. No caminho, comprava uma garrafa de vinho ou alguma coisa no mercado. E no dia seguinte, voltava para lá. Depois que passei de novo a dividir meu tempo entre o Rio e lá, vi que o meu território é aqui mesmo. Meu território em vários níveis. Emocional, de trabalho e de interesses outros. Gosto bastante de Nova lorque, gosto de passar alguns períodos lá, inclusive trabalhando, mas aqui é que é meu lugar. E acho que o artista tem que ter um lugar.

 A: Fale um pouco sobre a vinda no sentido que os trabalhos começam a ser feitos em séries. Eu posso dizer que a série “Piano Factory” está rendendo até hoje, desdobrou-se em um conjunto de subséries. Aparentemente, isso é bem diferente do que era antes quando você realizava pequenas famílias de pinturas. Agora, o volume é muito maior. Tem a ver com um dado mais profissional, saber fazer, trabalhar melhor uma ideia ou são necessidades que vão juntas? O que é exatamente isso?

D: Bem, quando fui morar lá, tive que mudar a maneira de trabalhar. Não que eu tenha decidido isso no avião. No avião, a questão era saber o que ia acontecer comigo. Aqui no Rio, chegava de manhã no ateliê às 10h, 10h30. Saia às 7h da tarde, e tinha dias que eu não fazia nada. Como é que eu ia viver essa vida lá? E falei para minha mulher: “daqui a três meses a gente vai estar de volta porque eu não vou ter como morar em Nova lorque”. A gente foi morar lá por questões familiares. Não tinha nenhum projeto de trabalho. Falando especificamente do trabalho, acontece que antes de ir para lá, eu estava num desses momentos nos quais você não entende o que está acontecendo. De 98 a 2000, comecei a fazer umas telas prateadas. Eram polípticos. Adotei um tamanho padrão de 1,10 × 1,10cm. Trabalhava cada uma delas individualmente e depois as justapunha. Isso era uma coisa que levava muito tempo. Naquela época, como um pouco ainda hoje, não conseguia localizar esses trabalhos dentro do meu projeto geral, não entendia muito bem o que estava acontecendo. Entendia como um pequeno desvio da coisa principal. Essas telas prateadas vieram exatamente antes da minha ida para Nova Iorque. Quando cheguei lá, continuei fazendo isso, mas a primeira coisa que fiz foi pendurar nas paredes, no meu ateliê que era grande, umas impressões muito bonitas, muito grandes de um piso que eu tinha feito no verão anterior no Brooklyn — no estúdio de uma amiga minha. Havia feito e guardado numa mala. Aí, quando cheguei, abri a mala e botei aquilo na parede. Enquanto isso, continuei fazendo meus prateados. Depois de um tempo, um dia em um aeroporto, pensei em fazer colagens com esses panos ao invés de usá-los como base de pintura.

 A: Você me contou que nem pensava em usar isso quando um amigo seu falou: “mas isso já é um trabalho”.

D: Foi o Robert Kelly, um pintor americano amigo meu. Botei os panos nas paredes e ele falou: “está pronto”. Eu falei: “está pronto pra você, eu sou barroco, não consigo, isso para mim não dá”. Ele falou: “realmente, você é muito barroco. lsso pra mim está pronto”. É parecido com a história da conversa com o Paulo Herkenhoff. Acho que tenho uma resistência para limitar meu trabalho a um tiro só, a uma afirmação tão peremptória.

 A: De fato, é quase um “ready-made”.

D: Houve algumas vezes que considerei um determinado pano apenas com a impressão como um trabalho pronto. Mas havia uma situação específica. Esse pano tinha um evento, um acidente que criava um contexto de imagem, uma narrativa. Mas o roteiro em Nova Iorque foi esse, coloquei minhas impressões na parede e, um dia em um aeroporto, pensei que devia fazer imagens com elas. Arrumei um assistente que era pintor e desenvolvemos juntos essa técnica de justapor os panos colando-os num outro suporte. Passei um tempo escolhendo a cola, a maneira de cortar os panos. Enquanto isso, pensava sobre o que representar. As primeiras imagens foram representações do meu espaço, de grupos de museus e espaços representados em outras pinturas. Ao longo do tempo, realizei grupos de pinturas distintas. Tudo isso tendo como matéria-prima impressões de chãos variados. Graças as suas construções de madeira, os EUA é muito bom para isso. Por exemplo, fiz uma fábrica em Connecticut, uma fábrica grande. Fiquei alguns dias lá sozinho, e foi muito bom; na verdade, essa etapa do trabalho é uma das mais legais.

 A: Por que te acalma?

D: Acho que é como se você estivesse semeando e colhendo. Pego aquelas coisas enormes — os tecidos e o chão — sobre as quais tenho certo controle. Sei que, dependendo das quantidades, vou tirar mais ou menos matéria do chão. Tem uma outra parte, como a temperatura do ambiente, sobre a qual não tenho controle. Como não tenho as dosagens exatas de água e cola, têm horas que tenho que pôr isso combinado à temperatura e à secura do chão — a idade do chão. Saem coisas inesperadas. Depois de Connecticut fiz alguns espaços no Bronx. Nessa altura, achava muito interessante a ideia de representar espaços de arte com uma superfície feita a partir de um outro espaço. 

A: É um desdobramento da ideia de representar o prego através do próprio prego.

D: Têm muitas histórias na impressão de um chão — bichos e pessoas passaram por lá. Tem um espaço que faço aqui na Lapa que foi usado para algum trabalho que usava tinta, o chão está saturado com essas tintas. Tinta que impregnou as minhas telas também. Então, é uma cor que está chegando para mim, na minha superfície e tenho que lidar com isso.

 A: Ocorre-me que todo espaço tem uma vida. Como o trabalho branco do Yves Klein, “O Vazio”, no qual ele deixa a galeria pintada de branco para que a vibração das pessoas impregne o espaço. Todo ambiente, qualquer que seja ele, está contaminado pelas diversas presenças que lá passaram — alguma coisa sempre fica. O seu trabalho recupera essa dimensão, ele puxa por aquilo que está adormecido, há como que uma elevação das coisas desaparecidas.

D: Eu fiz um trabalho que nunca mostrei, aquele que mencionei após minha definição: “Sudário-Memória”. São lençóis de hospital e de motel. Doei uma grande quantidade de lençóis novos para o Centro de Treinamento lntensivo do Hospital do Câncer e esses lençóis me voltaram depois do final da vida deles. Fiz o mesmo com um motel. Cada lençol desses está impregnado de presenças.

 A: Você nunca mostrou esse trabalho? E por que não?

D: Nunca, porque na época que o fiz ele parecia muito distante do que então estava fazendo em pintura. Fui ao hospital e ao motel. Tive que arrumar uma pessoa para me ajudar porque no motel foi realmente difícil convencer o dono. Doei lençóis sem logotipos, por isso houve muita perda. Fiz duas doações para o hospital. Na época, falei para o lvo Mesquita (atual curador da Pinacoteca do Estado de São Paulo): “isso não tem nada a ver com o que faço”. Foi no começo dos anos 90. E o lvo falou: “faz e depois você vê”. Aí, eu e o Marcantônio procuramos um lugar para mostrar, mas não achamos e nunca mostrei. Depois, mostrei três desses lençóis numa bienal na Inglaterra (Liverpool), mas nunca mostrei o trabalho.

 A: Quantos lençóis são?

D: Não lembro mais, mas fiz o suficiente para cobrir uma superfície muito grande.

 A: Curioso você dizer que isso não tem nada a ver com o seu trabalho. Dizer isto com dez anos de carreira, se tanto, é apostar num dado intuitivo, uma vez que você não sabia de antemão aquilo que viria a fazer. De um certo modo, aquilo que você pensa em fazer já é um prolongamento do trabalho.

D: É, talvez uma insegurança, uma defesa, que eu via também quando dava aula e vinham pessoas com os únicos três quadros que haviam feito em toda a vida dizer: “porque o meu trabalho…”.

A: É, porque como você verificou posteriormente, aquilo era o seu trabalho.

D: Voltando a “Piano Factory”, essas pinturas não retratam o espaço, são o próprio espaço. 

A: Espaços desabitados, porém, de algum modo, habitados pelo próprio espectador que entra dentro deles.

D: Como os trabalhos de Caspar David Friedrich — que muitas vezes têm um espectador dentro da tela — ou como os trabalhos do Michelangelo Pistoleto — que têm o espelho e o observador, uma pessoa de costas pra você. Gosto de pensar na presença do observador.

 A: Por isso a opção da grande escala?

D: Nessas telas sim.

 A: Quem que você gosta vai à grande escala em pintura?

D: O Polke, quase todos os artistas contemporâneos. O (Anselm) Kiefer.

 A: O Kiefer foi importante pra você?

D: Não como as pessoas acham. O artista que mais me interessa como autor é o Polke. É impressionante o processo de feitura do trabalho dele. Fico imaginando que aquilo ali é uma indústria de um homem só, porque a mão dele está muito presente. Eu não sei como ele consegue manter a intensidade.

 A: O processo é uma coisa pela qual você sempre teve muito interesse?

D: Sim.

A: O Nelson Leirner diz que, como ele tem 70 anos, faz as coisas sentado numa cadeira; se ele fosse um artista jovem faria instalações. Seus trabalhos demandam um esforço físico muito grande. Você chega muito cansado?

D: Agora não tenho mais condições de carregar esses painéis de madeira, mas, antigamente, eu corria riscos de me machucar no ateliê. Já me machuquei.

 A: O que é um bom dia de trabalho para você? Um dia produtivo? Como é que é a rotina?

D: No passado, me sentia bem quando terminava um quadro. Se bem que tinham dois momentos, porque é só no dia seguinte que você confirma se terminou mesmo. Hoje, um dia é bom não só quando termino um trabalho, mas também quando acho uma solução — solução em todos os sentidos —, ou ainda quando tenho uma boa ideia. Curioso falar “quando tenho uma boa ideia”, mas acho que a maioria das obras é fundamentada em poucos instantes. O Saint-Clair Cemin chama de revelação. Eu acho que esses são os momentos. Não uso a ideia de inspiração, acho quase cafona, parece que você tem uma coisa que os outros não têm. Acho que isso funciona mais para o jogador de futebol do que para um artista. São momentos de síntese onde você tem uma noção do que está desejando. Sinto que tem alguns momentos que são decisivos, como quando decidi fazer essas colagens, como quando decidi realmente executar os lençóis. Mas não sei qual o momento em que escolhi o título “O beijo do elo perdido” ou resolvi desenhar o bumerangue. Tem o momento e tem também a memória do momento que já é outra história. Mas posso dizer que não é todo dia que acontecem coisas excelentes. E agora, trabalhando em equipe, é uma situação um pouco diferente também. Muitas vezes tenho que estar ocupando eles ou provocando-os a me trazer coisas diferentes — não é muito frequente, mas às vezes acontece uma coisa proveniente de uma outra mão fazendo uma coisa inesperada e, às vezes, isso é interessante.

 A: Mas o trabalho, digamos, tem uma coisa da execução e uma outra da ordem da “criação”, da elaboração, dos projetos que você desenvolve num caderno. Como é que se dá isso?

D: Mas ocorre criação durante a execução. Escolhas que são fundamentais… Eu me lembro que em Nova Iorque uma das primeiras telas era muito grande, por volta de 3 x 2 metros. O problema todo era uma portinha que ficava no centro do trabalho e que tinha 10 x 10cm. Fiquei muito tempo para acertar essa porta porque todo o resto só ia funcionar se aquilo tivesse uma determinada solução. Acho que hoje acontece uma retomada parcial do processo que eu empregava quando trabalhava no Brasil. É como se eu combinasse as duas maneiras de trabalhar: a maneira que trabalhava anteriormente, que era mais intuitiva, um processo mais de embate; e a maneira que trabalhei nos EUA, que era uma coisa mais projetada antes de começar a execução.

 A: Mas esse projeto é mais caderno de notas ou mais computador?

D: Infelizmente, hoje é mais computador. Antes não tinha muito desenho. Ainda faço desenhos em papel, mas o computador é muito próximo de uma coisa final. Manipulo os panos que tenho no meu computador. E, graças a ele, posso executar uma coisa muito próxima do que vai ser feito. É um tipo de anotação diferente. 

A: E sai mais projetado. Você acha que a geometria – porque agora esses cortes que você está fazendo parecem quase feitos a laser, coisas de máquina – é favorecida pelo recurso do computador?

D: Na verdade, é curioso porque todos são feitos à mão. Por mais que o projeto se dê no computador, a passagem do computador para tela é à mão, não tem nenhum processo mecânico. Eu faço a máscara e corto com a mão. O computador é mais para definir as composições.

 A: Mas hoje saem muito mais telas, e isso acontece porque tem equipe. O processo é muito mais rápido, mais dinâmico que antes?

D: Há dois anos era mais dinâmico. As telas eram muito mais simples, porque agora são muito mais cortes e recortes.

 A: Você demorou quanto tempo para fazer a capa do catálogo do MAMAM? Qual é o nome dessa obra?

D: “Obra”. Ela ficou um bom tempo porque a execução foi bem mais elaborada. Era uma imagem inspirada em um trabalho na Bienal de 2004…

 A: Do Thiago Honório.

D: Eu a dividi em três camadas, três superfícies: as madeiras mais distantes, as do plano intermediário e as situadas mais à frente. Levei um mês fazendo essa tela.

 A: Com a equipe?

D: É, porque sem a equipe ia ser uma outra história. E se eu for trabalhar em Nova Iorque não terei como ter três assistentes trabalhando comigo.

A: Portanto, uma tela dessas você deixa para fazer aqui?

D: Faço aqui.

 A: Virou uma linha de produção com diversas frentes.

D: Está mudando. O processo está ficando mais divertido. Estou saindo de um procedimento que controlava bem, com poucos desafios. Não que fosse chato fazer aquilo. É bom projetar uma coisa que você gosta e depois executá-la. Mas é que gosto da ideia de chegar a uma coisa que não tinha inicialmente pensado.

 A: Recentemente, ouvi um comentário de um excelente historiador de arte, o Jorge Coli, que disse que todo historiador de arte precisa de uma mesa grande. Vejo que você também, vejo que você se diverte com isso. Você pega a imagem do Thiago Honório vai para uma do Piero della Francesca, vai juntando, colando, deixando com que essas coisas se decantem. O seu ateliê nada mais é do que uma grande mesa sobre a qual estão, inclusive, as telas em preparo.

D: Como eu disse, adoro imagens. Gosto de livros. O primeiro quadro de verdade que vi foi aos vinte e poucos anos, quando consegui viajar.

A: Viajou para onde?

D: Europa.

A: Vinte e poucos anos? Logo depois que saiu da faculdade?

D: 25. Logo depois que saí e consegui juntar dinheiro fui ver os museus. 

A: Qual foi o primeiro museu, o primeiro impacto?

D: Eu acho que foi em Paris, foi o Beaubourg. Comecei pelos contemporâneos. Depois fui para o Louvre, mas o Louvre é um museu difícil. Até chegar no assunto, você já viu muita múmia, muita coisa que não era o que estava procurando. Mas o curioso é que eu tive a impressão de estar me surpreendendo poucas vezes. É claro que o original é outra história, mas, muitas vezes, tem certa decepção. Eu convivi a vida toda com a representação. Nesse sentido, o original que mais me impactou foi o David de Michelangelo que está em Florença.

A: A coisa que mais me admirou, mais me surpreendeu quando comecei a frequentar os museus, foi a escala das obras, ou porque era muito menor do que imaginava ou porque era muito maior do que imaginava. Esse é o grande problema da reprodução, o livro achata, tudo fica com o mesmo tamanho e todas as pinturas, ao menos até bem pouco tempo, eram impressas em couché brilhante, indistintamente cobertas de verniz reluzente.

D: E, depois, tem o caso do restauro: vi “A Sagrada Família” do Michelangelo logo depois do restauro e não batia com a imagem que eu tinha dela. Com o restauro, ela virou uma obra vivamente colorida, enquanto a imagem que eu tinha era de uma coisa muito sombria. Mas a escala que me decepcionou obviamente foi a “Monalisa”, e a que eu achei interessante foi “Les Demoiselles d’Avignon”, que era uma tela muito maior do que imaginava.

 A: Saindo um pouco da pintura, quais obras — filmes, livros etc — foram marcantes?

D: Não tive muitas revelações. Nasci numa casa muito pouco artística… Ainda que minha mãe desenhasse e meu pai fosse muito criativo, não existia a possibilidade de eu pensar em ser artista. Eles não frequentavam essas coisas, museus, exposições. Não falavam de arte em casa. Tinha muito livro que meu avô havia deixado. Meu pai gostava de comprar enciclopédias, o que era interessante. Quando era muito pequeno, eu quis fazer uma enciclopédia. Comecei, inclusive. Meu irmão era o meu sócio, mas ele não gostou da trabalheira e abandonou o projeto. Na época em que nasci, a gente estava naquela maré política difícil. Eu era um pouco mais jovem para estar envolvido com algum movimento político, mas não era tão jovem assim para não ver aquilo acontecendo.

 A: Isso já aqui no Rio.

D: No Rio. A gente morou dois anos em São Paulo, porque a Panair do Brasil fechou. Meu pai era piloto da Panair, e foi voar na Vasp. Eu morei só dois anos em São Paulo e a minha vida lá foi jogar bola na rua, essas coisas. Depois, vim para o Rio, entrei na faculdade, passei a ter uma sensação maior de liberdade. Entre os momentos importantes consta a descoberta do Robert Crumb.

A: Você lembra onde o descobriu?

D: Numa livraria aqui…

A: Então, foi um livro dele.

D: Um livro do Robert Crumb. Era uma das primeiras coisas dele publicadas no Brasil. Era o final dos anos 60. Eu não tenho nada a ver com o que ele faz, a não ser, talvez, um pouco da angústia, coisa que me interessava. Agora, cinema… não me lembro de nenhum filme pontual, embora possa ter havido alguns. Durante a faculdade, o desenho era um instrumento de expressão para mim. Eu fazia e guardava na gaveta. Coisa, assim, meio intuitiva como minha mãe fazia.

A: E você fazia isso para o jornal da faculdade?

D: Eu desenhei para O Cruzeiro umas coisas. Fiz algumas charges para o Pasquim.

A: Pasquim, é!?

D: É, há muito tempo atrás. Saíram algumas charges. Eu nem as tenho mais. Depois, fiz umas ilustrações panorama econômicas para O Globo. Na faculdade, fazia charges para o Casseta Popular, que começou lá no Fundão.

 A: Mas o nome já era Casseta Popular?

D: É, começou com esse nome. Hoje, são os caras do Casseta e Planeta, três deles são engenheiros. E a gente fazia o jornal na faculdade. Era divertido. Mas eu não me sentia um legítimo humorista. Também ia, de vez em quando, com meus amigos do Posto 6 ao MAM; até me lembro de uma exposição com trabalhos do Helio Oiticica, com instalações, ninhos etc. Mas a preocupação não era a exposição. A gente fumava maconha e ficava lá dentro se divertindo.

 A: Que diferença do modo como hoje os museus são frequentados por nós, não é mesmo? No mundo profissional dos artistas, o pessoal faz muita pose de artista?

D: Faz. É uma tremenda competição. É muita insegurança. No começo, eu não prestava muita atenção. Tinha um tipo de defesa, uma arrogância. Depois, vi que aquilo não estava me ajudando muito. E resolvi tentar ser mais diplomático. E, agora, eu prefiro não me incomodar muito com isso. Se quero sair com meu amigo artista, vou sair com ele porque ele é uma pessoa interessante. E tenho certa preguiça para fazer “network”. Sair com alguém por interesse profissional. Porque não foi assim que comecei a fazer o meu trabalho. Comecei a fazer por uma necessidade pessoal. Então, às vezes, prefiro sair com meu amigo economista, porque às vezes as conversas são muito mais interessantes. Segundo a Louise Bourgeois, “artistas, mais do que discutir a obra, só se interessam pela técnica do outro”.

 A: Como é isso?

D: É engraçado, eu tenho amigo lá em Nova Iorque que esconde a técnica que utiliza. A segunda vez que perguntei algo sobre como ele fazia percebi que não era adequado. Tem um tipo de preocupação quase que industrial na obra. Eu não tenho. Se vejo alguém influenciado pelo meu trabalho, sinto até uma certa preocupação pela pessoa, como ela vai elaborar a partir daí. Porém, é difícil você começar sem ser influenciado por alguém.

A: Nem todo mundo consegue escapar da influência, terminando por ficar sob o impacto dela. E acho que a pluralidade de opções que você tem hoje, muito diferente do período moderno, não simplificou, complicou.

D: É que o período moderno dava um tipo de falsa proteção.

A: É, em certo sentido, oferecia uma rede de segurança, operava dentro de um campo mais bem delimitado.

D: Inclusive, acho que o que alinhavava o pessoal dos nos anos 80 era a diversidade de soluções que surgiam a partir da reação a uma linguagem conhecida, desgastada. As maneiras como a Leda ou o Leonilson trabalhavam, manifestava uma cozinha pessoal, separados entre si.

 A: Em relação aos trabalhos recentes, eu queria voltar ao MAC de Niterói. Pelo seguinte: do ponto de vista da técnica, do raciocínio, ele tem a ver com a silhueta. É onde você leva adiante a ideia da silhueta, de trabalhar com o negativo de uma forma. Por outro lado, no âmbito da imagem, com aqueles pássaros, ele é bastante díspar.

D: Quando me propuseram a exposição no MAC, olhei para aquele tapete azul que recobre todo o piso do museu e falei: “olha, quando esse tapete sair do chão, me chama”. A ideia era representar o museu com esse carpete nas suas próprias paredes. Mas o problema passou a ser como fazer isso com um tapete tão homogêneo e azul. Foi um embate interessante. Tive que inventar uma imagem a partir do material que eu tinha. O MAC é um ovni, enfiado em um dos lugares mais bonitos do Rio.

 A: Mas ele também é bonito.

D: Na época, eu não gostava, não gostava dele, achava mal-acabado. Depois de usá-Io, depois de ficar lá montando a minha exposição, deitado naquela praia — aliás, genial a ideia de praia que o Nelson Leirner aplicou na exposição dele —, eu vi que aquilo era muito legal. Naquela área, voa um pássaro, um pássaro comum nessa região. Um pássaro cujo nome é trinta-réis. Então, peguei o tapete do MAC e recortei nele um bando desse pássaro. O tapete se tornou o céu e a ave era a própria parede do museu.

 A: É um sítio específico, entendendo específico não apenas o espaço, o ambiente onde a pintura está, mas o próprio sítio do museu, a ponta na qual ele foi construído. Quer dizer, a região está incorporada na questão. Eu também queria voltar para um ponto que ainda não comentamos, trata-se daquela sua pintura sobre a mãe do Whistler. O tratamento que você dá a ela remete à ideia de que toda obra de arte, ao ser recortada de seu contexto, converte­-se num texto fechado em si mesmo, um texto sem o contexto original. É a impressão que me causa essas imagens fortes a que você faz uso. Foi o que aconteceu com a sua série sobre a mãe do Whistler, que foi sofrendo releituras, tratamentos, desaparecendo, virando uma silhueta cada vez mais espessa, até se tornar uma coisa que não se sabe mais o que é.

D: Sabe, a primeira vez que vi a imagem da mãe do Whistler foi num desenho animado. 

A: Ah, foi!!

D: Não, não foi bem assim. A primeira vez foi numa enciclopédia em preto e branco, chamada “Tesouro da Juventude”.

 A: Frequentei muito.

D: Depois, a vi num desenho animado. Uns ratinhos entram numa sala e tem aquela coisa monolítica, austera, que era a mãe do Whistler que levanta a saía e sai correndo. 

A: E também não deixa de ser engraçado, como que uma coisa pode ser separada do seu contexto, da sua pompa, da sua sisudez. Separada e avacalhada.

D: Por outro lado, para mim, ela manteve uma qualidade, uma força interna capaz de determinar um tipo de atemporalidade. Ela tem uma coisa de granito negro e de lá está saindo uma cabecinha que não está olhando para você. É uma aflição ver aquilo. Que mãe é essa?

A: Seca.

D: Mas é isso que me interessava. Inclusive, acho que o desenho animado trata isso também. Ele pega aquela mãe estranha e a humaniza. Quer dizer, talvez este tenha sido meu desejo ao usar a imagem da mãe do Whistler — operar na qualidade que essa imagem tem, estendê-la até o presente. Afinal, como você diz: “o último trabalho da minha série já está distante do original”. A mãe sumiu.

 A: Você conta histórias, sobretudo, a partir do título. Outro dia, li uma afirmação muito forte do Carlos Fajardo — que, além de importante artista, é professor de dezenas e dezenas de artistas —, segundo a qual hoje não haveria mais espaço para a narrativa. Isto para ele, naturalmente, cuja obra não lida e quase nunca lidou com isso. Mas com esse pronunciamento dele fica claro que existem posições das mais variadas. Até porque tem uma enorme quantidade de trabalhos de autoria de artistas que tratam disso e o fazem bem. Como é que você vê isso? Te incomoda, considerando o que você faz? Afinal, para muita gente, contar histórias é do âmbito da literatura, equivale a sair do campo estrito da pintura, das artes visuais.

D: Acho um risco afirmar isso. Nunca vi tanta narrativa na arte como hoje em dia — um desejo de criar uma universalidade a partir de coisas pessoais. As estruturas narrativas são muito presentes. Até demais. Vídeos e instalações têm esse aspecto muito forte. Obviamente que são narrativas não lineares, inconclusivas. Isso é um tipo de atitude muito impregnada da autorreferência do pensamento moderno. Eu não me incomodo com isso. Porque se você for ver a pintura pelo mundo, principalmente na Europa, acontece de tudo. Essa visão concorre para uma compreensão evolutiva da história. 

A: É teológica. Como se a arte convergisse para um único ponto.

D: Mas essa estratégia se esgota. E a gente continua acordando no meio da noite. E aí, não tem modernismo que vai impedir você de se expressar.

 A: A gente continua acordando no meio da noite… Isso dá um nome para exposição, não? É uma divisa pessoal.

D: “Acordando no meio da noite”.

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