Daniel Senise

Daniel Senise

Fernando Cocchiarale

Texto publicado no catálogo da exposição do artista na XX Bienal de São Paulo, em 1989.

Fundada na necessidade essencial de marcar sua diferença em relação à representação naturalista, elaborada pelo Renascimento, a Arte Moderna assume a idéia de ruptura como um objetivo básico de sua singularidade. Para a consciência modernista, esta idéia é determinante não só para o surgimento da nova arte, como também para seu desenvolvimento, marcado pela ruptura sucessiva entre as vanguardas, cujas divergências residiam, em última instância, nas diferentes propostas que afirmavam a arte enquanto um território autorizado a produzir imagens autônomas em relação à realidade exterior à obra. Seja pelo crivo estrito da racionalidade construtivista ou pela explosão expressionista, por exemplo, a arte e, em particular, a pintura moderna, formulou projetos, muitas vezes antagônicos, que se constituíram em solo alternativo à identificação do imaginário com os modelos visíveis da natureza, indispensável, ao menos em tese, para o Naturalismo Renascentista. De fato, a autonomia da arte decorrente da ruptura com a mimesis e a especialização das vanguardas, causada pelas rupturas intra-modernas, regeram, durante maior parte do século XX, o que em pintura identificava-se com a modernidade. Essas características, somadas atualmente à distância histórica, permitem o estabelecimento de limites relativamente claros entre as produções que definem o núcleo da arte desse período.

O ciclo histórico da vanguarda, concluído há mais de vinte anos, tornou-se ele próprio uma tradição a ser superada pela produção artística recente, através da formulação de questões diferentes daquelas da modernidade. A idéia de ruptura – responsável pela diferença modernista em relação ao passado e por suas transformações internas, também fundadas na ruptura de linguagens já assimiladas pelo mercado e pelo público – não pode proporcionar a saída para a crise das vanguardas, uma vez que a remete, novamente, à sua origem, prolongando um ciclo que, exausto, não mais demonstra nenhuma propensão à novidade. Como resposta a essa situação de crise geral, e, em particular, à radicalidade da Arte conceitual – que atribuía à idéia um papel primordial no ato criativo -, ressurge como questão, na passagem dos anos setenta para os oitenta, a retomada de meios expressivos como a pintura que novamente coloca a manualidade como elemento fundamental das artes plásticas e cuja relação com o passado pretende fundar-se na síntese – e não mais na ruptura – da pluralidade de questões legadas por diferentes momentos da história da arte.

O retorno à pintura é marcado pela incerteza de seus virtuais desdobramentos. Alguns artistas o compreendem como a retomada, pura e simples, de imagens ou questões tradicionais da arte, confundindo, por isso mesmo, a pós-modernidade anunciada com a pré-modernidade, como é o caso de parte da transvanguarda italiana, ou da freqüente redução da obra a imagens que resultariam, hedonisticamente, do exercício do prazer de pintar – sem levar em conta a necessária reflexão constitutiva de qualquer poética – tal como o discurso de parcela da Geração 80 brasileira. Quase dez anos depois é possível distinguir nesse conjunto as obras que conseguiram fundar o retorno à pintura, na diferença em relação ao momento positivo que a antecedeu historicamente – a Arte Moderna – sem contudo ignorá-lo.

Surgida com a Geração 80, a obra de Daniel Senise é um dos bons exemplos, no Brasil, do enfrentamento dos problemas colocados pela volta à pintura, sem render-se às facilidades do simples retorno à representação pré-moderna ou da produção de um imaginário que se quer pós-moderno sem ter assimilado a contribuição da modernidade.

Pode-se afirmar que a obra do artista, apesar das modificações ocorridas desde seu começo no princípio da década de oitenta, tem por eixo central a elaboração de imagens cujo sentido não pode ser enunciado pelo discurso iconográfico tradicional, porque estas não associam representações plásticas a significados convencionais extra-artísticos. Vazias de qualquer conotação temática, as imagens têm como ponto de partida a impressão de qualquer objeto que o olhar do artista recolhe da experiência sensível, reserva na imaginação e devolve como poética em completa integração com os procedimentos pictóricos utilizados. Numa certa medida, pode-se dizer que todos os artistas trabalham desse modo, mas é espeçífica a eqüidistância cada vez mais acentuada de Senise em relação à maneira pela qual as tradições naturalista e moderna – construtivista, expressionista, etc. – compreenderam a imagem a partir da importância atribuída, ou não, por seu discurso ao papel na arte, da realidade natural percebida pela visão, enfatizando-o, negando-o ou substituindo-a pela expressão do universo interior do artista: compreensões excludentes para a Arte Moderna, uma vez que a idéia de ruptura só é possível através da explicitação da unicidade de cada um desses procedimentos de construção da imagem que, por isso mesmo, não comportam ambigüidades desse tipo. Nesse sentido, a eqüidistância em relação ao passado, característica da obra do artista, revela o domínio pleno do recurso intencional a códigos historicamente contraditórios que marca as alternativas mais consistentes para o impasse gerado pela crise da modernidade.

Rigorosamente falando, não é possível reduzir o papel da imagem em sua pintura à representação (naturalismo) ou à presentação (modernidade), uma vez que esta se insinua pelas brechas existentes entre essas duas noções. Tampouco podemos vinculá-la à expressão dramática, apesar da “atmosfera de catástrofe” de seus primeiros trabalhos, justamente observada por Wilson Coutinho, que chamou a pintura de Senise de “Teatro das Sensações Mutiladas” (em texto para o catálogo do artista, na 18ª Bienal de São Paulo, em 1985). As imagens presentes na obra, embora preexistam, em alguns casos, como referências, não podem ser desvinculadas dos processos de fatura investidos em sua formação, o que implica na subordinação do imaginário do artista às decisões em cadeia que deve tomar durante a execução das pinturas, que acaba incorporando novos elementos às imagens produzidas.

Até aproximadamente 1985, a pintura do artista caracteriza-se por uma ambigüidade tática – o trabalho revela e oculta, ao mesmo tempo, imagens de objetos reais que num olhar mais detido não podem ser identificadas facilmente e onde sua combinação escapa a qualquer sentido evidente. Na verdade, poucos elementos dos quadros podem ser associados às coisas familiares do quotidiano, embora sugiram o tempo todo essa proximidade. A eficácia dessa tática decorre da fragmentação e da articulação das imagens que ocupam ostensivamente quase toda a superfície da tela, cujos limites suprimem partes das figuras que os tangenciam, transformando-a, também, num fragmento cenográfico de paisagens imaginárias. A dramaticidade das obras iniciais do artista é determinada não só pelos procedimentos de fragmentação e combinação das imagens, como também pelo tratamento volumétrico das formas – vigorosamente delineadas e sombreadas – e pelo uso predominante das cores negra, branca, vermelha, e, em menor escala, azul. Apesar do tratamento quase escultórico do volume nessas pinturas, o espaço da tela resiste à tridimensionalidade, uma vez que inexistem tanto a perspectiva quanto qualquer fundo, porque a superfície do suporte é preenchida quase integralmente pelas figuras.

A partir de 1985 ocorrem mudanças significativas na produção do artista. O acúmulo e a mutilação das imagens dos trabalhos do princípio da década de oitenta – que funcionavam para dissimular sua fácil identificação, preservando a obra de leituras iconográficas, centrais em algumas interpretações da crítica e na posição de vários artistas que, neste momento, viam na “figura” a prinicipal característica da volta à pintura – desaparecem por completo preparando a transição para as pinturas atuais de Senise. Assegurada sua presença não temática, no sentido tradicional da representação, a percepção das imagens torna-se clara, uma vez que estas não mais tangenciam os limites do quadro nem, na maioria dos casos, confinam umas com outras.

O isolamento das formas recoloca a distinção entre fundo e figura, praticamente ausente nas pinturas iniciais. Essa diferença, entretanto, sustenta-se na tensão entre o caráter volumétrico das imagens – agora mais pictórico do que gráfico, diferentemente da fase anterior – a a ausência de profundidade do fundo que, apesar de seu tratamento matérico, é basicamente plano, por causa de sua relação contrastante com a forma. A cor passa a ser mais intensa e perde a dramaticidade de antes, insinuando-se, principalmente, pelo fundo, onde predominam os azuis, amarelos, vermelhos, etc. As pinturas feitas entre 1985 e 1987 introduzem não só uma nova compreensão da imagem pictórica na obra do artista, mas também materiais de trabalho não utilizados anteriormente, como a substituição da tinta acrílica pelo óleo.

As pinturas recentes de Daniel Senise são em parte uma síntese das fases antecedentes de sua obra. A transformação do caráter da imagem em seu trabalho mantém estreita ligação com processos diferentes de fatura, utilizados há pouco mais de um ano. A mudança do tecido do suporte – passa a usar o cretone, muito mais permeável do que a lona, por exemplo – e a utilização de uma técnica nova de trabalhá-lo vão acentuar ainda mais a importância do processo na construção da imagem. O cretone, posto no chão do ateliê, é em seguida coberto por uma camada de cola com pigmento. Ao secar é retirado, e junto com a tela vem toda a matéria pictórica – manchas de tinta de outras pinturas, fibras, folhas, etc. – que já estava no piso. O aspecto, por vezes sujo, e descascado que mobiliza toda a superfície da tela – uma vez que ao ser retirada, parte da matéria permanece aderida ao chão, deixando vazios de tinta no suporte – determinam, já, uma primeira instância significativa das pinturas. O tratamento dado à tela por si só já o torna relevante como imagem. Mas essa é apenas a primeira etapa do processo. Em seguida, ou a operação é repetida ou começa a pintura propriamente dita.

A tela é retrabalhada a partir de pedaços da superfície que propiciam, conforme a imaginação do artista, o surgimento de objetos – isolados ou não – que tecem uma tela de significações que articulam fundo a forma enquanto imagens. Essa articulação só é possível porque a matéria, determinada pelo modo como o suporte é tratado, integra os objetos pintados à superfície da tela. A matéria sobredetermina, pois, o caráter imagético das pinturas recentes de Senise. Existe nelas um clima de grandiosidade meta-histórica que aponta para a temporalidade silenciosa dos trabalhos, cujas imagens instauram uma dialética de clareza e mistério que os tensionam continuamente. Essa relação com a história é reforçada pela referência, em alguns trabalhos, a imagens etruscas, como os golfinhos, e pelo porte mural das pinturas, todas de grandes formatos. O recurso à história, não como simples volta ao passado mas como fundamento para renovação do presente, inscreve o trabalho do artista no entendimento pós-moderno dessa questão. Por isso mesmo, o ar envelhecido das pinturas não pretende simular uma idade que elas não têm. Ao contrário, sua materialidade específica constitui-se em imagem do precário, do sujo e do velho. Em relação aos trabalhos de antes ocorreram algumas alterações cromáticas que introduziram valores que aumentam a importância da cor em sua pintura – principalmente no fundo – embora o claro-escuro continue a desempenhar papel fundamental na solução dos volumes. Muitas imagens agora são indicadas por chapadas de cor, por transparência ou até por vazios, determinados por formas aparentemente abstratas. Sem perder algumas de suas características básicas – como a correta compreensão do uso de grandes formatos; a vinculação indissociável da imagem à materialidade da obra – Daniel Senise, passa, atualmente, por transformações que alteraram de modo considerável os desafios com os quais o artista se defronta e assume como princípio e método de trabalho. Os riscos dessa aventura, controlável pela experiência, talvez esclareçam a qualidade de uma obra que, sem a segurança de roteiros a priori , certamente elabora alternativas para a nova pintura brasileira.

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