Daniel Senise

Cinzas cinza

Paulo Miyada

Texto publicado no catálogo da exposição Todos os Santos, Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, em 2019

  1. Princípios

Direto ao ponto: o princípio cognitivo que está sempre agitado pela obra de Daniel Senise é a capacidade de perceber simultaneamente dois ou mais tipos de signos. O simbólico, o indicial e o icônico se embaralham em suas imagens ambivalentes, que sugerem perspectivas, descrevem espacialidades e, no mesmo plano, trazem marcas de contato e vestígios de ações. Assim, existem pelo menos duas leituras concorrentes em cada composição, uma de sentido representativo e outra decorrente de processos de contágio e impregnação dos materiais.

Esses níveis imagéticos não apenas disputam a atenção do espectador, mas também criam sinais ambivalentes. Por exemplo: a coloração e a textura agregadas ao tecido que Daniel Senise imprime com seiva, pó e sujeira de um piso de madeira serão percebidas, depois, tanto como vestígio de uma duração passada quanto como nuance tonal para reforçar ou burlar a sugestão de profundidade em uma de suas telas compostas por centenas de cortes de tecidos manchados.

Além disso, em muitas obras a complexidade visual atua concatenada com um sentido alusivo soprado por títulos que ressoam memórias — do artista ou da arte e sua história. É na desaceleração da percepção conquistada pelo atrito cognitivo que Senise possibilita que suas obras sejam arcabouços de reminiscências e associações que a rigor não estão inscritas em sua denotação explícita.

As fotografias com objetos e/ou colagens que Daniel Senise faz desde 2005 funcionam como corolário e extrapolação de sua poética. De certa forma, elas explicitam os processos aqui resumidos, na medida em que coadunam dois estatutos imagéticos distintos: o fotográfico e o objetual. Em cada obra, um espaço foi visto, enquadrado e registrado em uma imagem plana perspectural e de caráter indicial (fotográfico), para então ser impressa e servir de suporte para um ou mais elementos matéricos, no mais das vezes retirados do mesmo espaço visitado pelo artista.

Nas variações acumuladas ao longo dos anos e filtradas pelo recorte expositivo da presente mostra, é possível aprender muito sobre as possibilidades que se abrem nesse encontro de atitudes díspares e complementares. 

  1. A indiferença

Há duas imagens apresentadas lado a lado chamadas WL. 140///- estacionamento [2008]. São duas impressões da mesma fotografia de um espaço composto apenas por parede, rodapé e piso, sobre o qual não há outros objetos além de sujeira e detritos. Sobre cada uma das fotografias aderiu­-se uma camada de poeira varrida no local fotografado. O caráter já discreto da poeira torna-se ainda mais indistinguível pela rima visual entre a poeira sobre a fotografia e aquela registrada por sua lente objetiva. A colagem aqui é metonímia, redundância e pleonasmo. Ela torna as fotografias distintas (segundo critérios jurídicos-analíticos), mas equivalentes (para critérios visuais-processuais). 

  1. A alternativa

Cinco imagens chamam-se WL. 140 II [2008]. Ou, mais uma vez, uma mesma fotografia impressa cinco vezes serviu como substrato sobre o qual Daniel Senise construiu cinco imagens. Em cada uma delas, o canto manchado por uma infiltração de água transforma-se em improvável espaço expositivo para recortes que remetem a obras do artista. São, na verdade, fragmentos de tecidos tingidos/manchados por monotipia do piso do espaço que vemos na fotografia. Pelo contraste de escala e pela indiscernibilidade das figuras, cria-se certa atmosfera pictórica em cada recorte, o que é reiterado pelo encaixe do corte na perspectiva da cena. Assim, há um curto-circuito de ambiguidades visuais, multiplicado pelo exercício de alternativas que se formam com a justaposição das cinco obras.

  1. A janela opaca

Sorocabana V [2017] é um painel de 1,50 x 2,70 metros. A imagem fotográfica impressa está parcialmente eclipsada por quatro peças de madeira rebitadas, possivelmente encostos de cadeiras. Dispostos linearmente e em intervalos regulares, os retângulos abaulados são como janelas em uma cabine de avião — mas são opacos: bloqueiam a perspectiva, ao invés de ampliá-la. Volumétricos, eles tornam a composição mais planar, ainda que saltem da imagem alguns centímetros para a frente. Nesse caso, portanto, a ambivalência se transforma em uma ambiguidade ou até em uma contradição entre termos. O trabalho evita a percepção rápida e uniforme, ou seja, interrompe a uniformidade da percepção.

  1. A mise en abyme

Sorocabana I [2017], por sua vez, produz um efeito (analógico) de realidade aumentada. Um teto em ruína parcial é dramatizado pelo enquadramento quase todo tomado pelas curvaturas da estrutura em colmeia tornada aparente pela queda de parte do revestimento do teto em arco de uma estação de trem. Calhas metálicas presas ao teto também aparecem acometidas pela gravidade, parcialmente rompidas e pendentes em fragmentos erráticos. Algumas delas, caídas sobre o chão, foram coletadas pelo artista e posicionadas em rima visual com a composição, exagerando a precariedade representada. A sobreposição do elemento de colagem e a cena fotográfica geram uma espécie de rapport, no jargão cinematográfico, uma continuidade narrativa e perceptiva verossimilhante, embora artificial.

  1. Extrapolações

Em 1871 James Whistler pintou sua mãe sentada de perfil e chamou sua tela de Arrangement in Grey and Black (Arranjo em cinza e preto), enfatizando os aspectos compositivos, tonais e formais da imagem. Trata-se de caso pioneiro de um título arbitrado pelo autor de uma pintura que desvia totalmente o foco do sentido narrativo de sua obra. Por isso mesmo, muito da recepção do trabalho concentrou-se no que aparece descrito no subtítulo anexado à obra: Portrait of the Artist’s Mother (Retrato da mãe do artista). Com o tempo, por metonímia, a pintura passou a ser conhecida como Whistler’s Mother (Mãe de Whistler).

Essa variação enunciativa é mais do que uma disputa entre as intenções de um artista e a apreciação do público, uma vez que existe uma série de polaridades em jogo. Há um canal afetivo e emocional que se enfatiza quando se nomeia a obra pelo reconhecimento da figura retratada como mãe do artista, porém, na verdade, esse é o aspecto da obra que permanecerá sempre opaco aos observadores, pois ninguém pode efetivamente acessar qual era a natureza da relação entre mãe e filho, entre James e Anna Whistler. Além disso, se a ênfase do “arranjo” dos cinzas e pretos presentes em todos os elementos pintados aparece como um capricho do artista, que sublinha orgulhoso uma preocupação plástica que a sociedade da época não estava preparada para discutir diretamente, essa ênfase também é, na verdade, uma reiteração do que efetivamente o espectador tem diante de si: um aglomerado organizado de tintas pretas e cinzas.

Esse caso de nomeação e renomeação é um lembrete de que, na arte, emaranham­-se intenções, expectativas, memórias, projeções, esquecimentos, associações, reminiscências, entendimentos, atos falhos e pontos cegos. Nem artista, nem público conseguem desfazer o nó que se cria a cada nova imagem, a cada nova obra.

Talvez por isso essa história tenha lugar especial no repertório de Daniel Senise. Em 1992, uma pintura era dominada por uma mancha alaranjada resultante da oxidação de pregos deixados em repouso sobre a tela por algum tempo — seu contorno se assemelhava ao perfil da mãe de Whistler, o que foi explicitado pelo título Portrait of the Artist’s Mother. No mesmo ano, outra pintura em tinta acrílica trazia um fundo escuro e áreas brancas que definiam o que o nome da obra prometia: Retrato da Mãe do Artista II. No ano seguinte, viriam ainda as obras Sem título e Sem título. Apropriando-se do apelido popular da obra do artista norte-americano e multiplicando a silhueta da personagem que o gosto popular tende a privilegiar em sua interpretação da obra, Senise acabava enfatizando, em um falso paradoxo, os problemas da fatura pictórica de suas obras. Esses problemas, vale dizer, não por acaso, eram aqueles que acabariam por caracterizar sua produção como um todo (as sobreposições e ambivalências entre tipos de signos diferentes).

É significativo, portanto, que a obra mais recente de Senise, terminada durante a montagem da presente exposição, chame-se Arranjo em cinza e prata [2019]. A obra, um painel de 3,66 x 5,00 metros, é composta por placas de alumínio justapostas e majoritariamente cobertas por detritos dos carpetes incendiados em 2015 no Teatro Villa-Lobos, em Copacabana. Não há desta vez uma base fotográfica, e em primeira instância é possível perceber a obra como um arranjo formal, o que é logo reiterado pelo seu título. No entanto, esse título carrega uma história, como acabamos de ver, e essa história cautelar lembra que as coisas sempre podem ser mais complicadas. O material escolhido, por sua vez, tem suas próprias marcas de um acidente (o incêndio) que, por ser tão recorrente na história do Brasil (quantos incêndios em instituições culturais, acervos e patrimônios um mesmo país, tão jovem, pode ter?), evoca muitas ideias e sentimentos que transbordam o ritmo de cinzas e pretos dispostos por toda a composição.

Gosto de imaginar que será no exato momento em que o espectador se der conta de que está diante dos dejetos de um país eternamente jovem, jamais saudável (como definiu Lévi-Strauss), que a superfície reflexiva do alumínio que transparece nas frestas da colagem de cinzas refletirá a luz do ambiente em seus olhos, ofuscando­-o com o excesso de claridade.

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