Daniel Senise

Anozero ’19 – Bienal de Coimbra

Daniel Ariosto Portela 

Um dia em 1961 a campainha tocou em minha casa. Fui com minha mãe abrir a porta. Dois homens de terno perguntaram se ela era a mulher do comandante Portela. Ela disse que sim. Eles disseram que o comandante tinha sofrido um acidente aéreo mas que havia sobrevivido. Minha mãe correu para dentro de casa chorando. Morávamos em um apartamento no térreo. O chão do hall do prédio era de granito preto, tapetes vermelhos e lambris de madeira nas paredes. Meu pai era piloto da Panair do Brasil e também gostava de fotografar. Tenho guardado comigo um grande acervo de negativos com registros de suas viagens.

Oitenta Segundos no Inferno

Partimos de Manaus bem cedo naquela manhã de 24 de outubro de 1961. Nosso destino era Belém, depois de escalas em Itacoatiara, Maués, Parintins, Óbitos, Santarém e Altamira, nos estados do Amazonas e Pará. Após o quinto e último dia de uma viagem que fizéramos ao Acre, a tripulação estava satisfeita com a perspectiva de alguns dias de repouso e de mais um regresso ao lar.

O veterano Catalina (PBY-5A), ainda tal qual seu primeiro voo na região lá pelo ano de 1946, voava sereno e pachorrento. Já tendo pousado em Itacoatiara e Maués, prosseguia rumo a Parintins, situada à margem direita do Rio Amazonas, voando a 900 metros de altitude, logo acima de uma camada de pequenas cumulus. Abaixo, por entre falhas de nuvens, via-se o mundo espantoso que é a Floresta Amazônica, interrompida de vez em quando pela mancha de um lago ou um sinuoso trajeto de um rio.

Além da tripulação – eu no comando, Pina, o copiloto, Magno, o rádio-operador, Camarotti, o mecânico de voo e o comissário de bordo, Castelo Branco – estavam a bordo nove passageiros com destino a diferentes portos.

O hidroavião, apesar de bastante eficiente em sua missão de desbravador da Amazônia, não primava pelo conforto: dezessete passageiros acomodados desconfortavelmente nas suas duas cabines – nove na fronteira e oito na traseira. Não havia o porão de carga, esta quando tinha era colocada na cabine fronteira em lugares vagos de passageiros. Nesse voo, havia sete passageiros na cabine traseira e na fronteira estavam dois passageiros, mais cerca de 250 quilos de carga, acomodados junto ao posto do rádio-operador que também ficava ali.

Piloto automático ligado, tentava terminar o capítulo de um livro que lia antes de chegar a Parintins. A notável paisagem que passava embaixo no momento não me atraía muito, de tanto já tê-la visto. Deixava-a inteiramente para o Pina, que estava há menos tempo sobrevoando na região. Ele que tentasse calcular o número de árvores que alcançava a nossa vista, ou volume d’água, ou mesmo a quantidade de araras que avistávamos. Vista de um avião a baixa altura, a Amazônia se resume nisso: árvores, água e araras em profusão.

Pina avisou-me que faltavam uns 15 minutos para chegarmos a Parintins e era hora então de começarmos a descida. Como queria ler um pouco mais, desliguei o piloto automático e pedi-lhe que iniciasse a descida. Naquela época, em quase a totalidade das áreas de amerissagem, as poucas informações que obtínhamos sobre vento, condições do tempo e da superfície na área de pouso eram enviadas via CW pelo radiotelegrafista da Panair em terra ao rádio-operador a bordo. Nessas áreas, portanto, não fazíamos a fonia de praxe nos procedimentos de descida e pouso. Começamos a descer sem nem imaginar que, devido a uma parte da carga que transportávamos, estávamos mais próximos do Inferno do que de Parintins.

Há uma infinidade de artigos que advertem sobre o risco de se transportar cargas perigosas em aeronaves comerciais. Mas devido à morosidade ou mesmo à falta de outros meios de transporte, e mais ainda à negligência por parte das companhias de aviação que aceitam cargas e encomendas sem um exame do seu real conteúdo, limitando-se a pedir apenas uma declaração do remetente a respeito, o transporte desse tipo de cargas é mais comum do que possa imaginar. A ameaça a vidas que isso envolve não estava em cogitação dessas companhias.

Terminado o capítulo, assumi o comando do avião, pois pretendia eu mesmo fazer o pouso na área aquática de Parintins, já que as condições de suas águas não são muito calmas, e às vezes até violentas. Continuei a descida normalmente até passar para baixo da camada de cumulus por volta de 400 metros de altura, onde diminuí a razão de descida enquanto reconhecia o terreno nas proximidades de Parintins. À esquerda, vi um pequeno rio que deságua no Amazonas a alguma distância daquela cidade, rio acima e na mesma margem. Tudo parecendo normal, preparei-me para a aproximação e pouso.

Eram 9h57 quando o Inferno se abriu e nós mergulhamos nele. O Magno acabara de registrar esse horário no diário de bordo, para dar início às radiocomunicações usuais de pouso. Depois de tudo o que ocorrera, mais tarde lembrou-se desse detalhe e contou-me.

Começou com uma explosão abafada na cabine fronteira de passageiros, atrás de mim, onde estava a carga que levávamos. A proteção que tínhamos, eu e o Pina, era apenas uma parede metálica com três aberturas: uma central ovalada, de acesso à cabine de comando, que não tinha porta para fechá-la e estava portanto sempre aberta, e duas pequenas janelas atrás das cabeças dos pilotos que podiam ser fechadas com cortinas de tecido. Por essas aberturas, o Inferno chegaria até nós como um raio nos próximos instantes.

Virei-me rápido e perguntei ao Magno:

– Que foi?

Como resposta recebi na cara um jato de fumaça quente e densa, extremamente sufocante. Reagindo por reflexo, respirei fundo. Pior, pois enchi o pulmão de fumaça. Mais tarde verifiquei que além dos cabelos, pestanas e sobrancelhas muito queimados, também tinham desaparecidos os pelos das narinas. Concluí, então, que havia fogo com aquela fumaça inicial, pois esse foi o único momento em que expus o rosto. Sufocado, virei-me para frente e inclinado sobre o manche procurei me afastar ao máximo da fumaça. Inútil, ela já ocupara totalmente a cabine, tão densa que não conseguia ver minhas próprias mãos no comando. Nem o painel de instrumentos. Muito menos o copiloto Pina.

Reduzi a potência dos motores procurando manter uma descida suave enquanto pensava. Ainda não havia pânico. Ar puro era um problema prioritário, só havia fora do avião. Abri a janela lateral e, com cuidado, fui pondo a cabeça para fora procurando respirar.  O impacto foi forte, provavelmente estávamos a 100 nós de velocidade. Tentei imaginar o que acontecera lá atrás. No local da explosão, pelo que me recordava, o único fluido que existia era uma tubulação de óleo hidráulico que dificilmente pega fogo e muito menos explode.

Após respirar, limpando a fumaça dos pulmões, tirei a cabeça da janela tentando pensar o que fazer. Sentia nas minhas costas um bafejo extremamente quente. Olhei para trás e vi, sem muita nitidez, a cortina da janelinha atrás de minha cabeça em chamas. O pânico começou a se insinuar. “Que maneira estúpida de morrer”.

Tudo o que aprendera em 15 anos de aviação de nada me serviria agora. Aquilo era completamente imprevisto e diferente de todo o treinamento pelo qual passara. “É aquela maldita carga. Só pode ter sido ela!” – deduzi.

Aí o desespero chegou. Pensei até em saltar e deixar tudo para trás. Sei agora que se assim o fizesse iria me arrepender e me maldizer muito até chegar ao chão e me esborrachar.

Sentia o calor aumentando em minhas costas, nuca e cabeça. Curvei-me ao máximo possível sobre o manche, procurando fugir dele. “Preciso sair daqui antes que seja tarde. Mas como? Só pousando. E o mato lá embaixo? Centenas, milhares de árvores com mais de 30 metros estariam me esperando. Seria fatal.”

O fogo já deveria ter tomado toda a cabine fronteira de passageiros. Naquele momento o mecânico de voo, Camarotti, tentava inutilmente combatê-lo com um extintor manual, mas eu não sabia. Tão violento e rápido o que estava acontecendo que julguei não haver sobreviventes nas cabines de passageiros. Labaredas entravam pelas aberturas da cabine de pilotagem, que fora, desde o início, isolada do resto do avião pelo fogo.

 A ideia de saltar veio de novo. Mas embora isso parecesse uma morte mais rápida, o medo que eu sentia também era grande. E, sei lá, algo poderia ainda acontecer. Para respirar botei outra vez a cabeça para fora da janela, mantendo-a até habituar-me ao impacto do ar. Abri os olhos e tentei focalizar a vista. Ardeu um pouco, mas consegui ver as coisas ainda um pouco embaçadas. Pouco a pouco a visão melhorou e olhei para baixo com saudades do chão duro e firme. Embaixo, um pouco à esquerda e à frente, visualizei uma mancha parda que me pareceu, na ocasião, duas lagoas secas contrastando com o verde escuro da selva. “É aqui. Tem que ser aqui!”

 A descida seria quase na vertical e as chances de dar certo eram mínimas, pois se errasse o momento de interromper o mergulho para reduzir a velocidade e pousar, eu me enterraria no chão. Restava o consolo de tudo acabar mais rapidamente. Não quis descer normalmente, circulando a área, por dois motivos: a descida duraria de três a quatro minutos, tempo esse que eu não dispunha, e, naquela confusão, eu poderia perder as lagoas de vista.

 Decisão tomada, não esperei nem mais um segundo, pois sabia que não teria outra chance. A cabine estava muito quente e eu me expusera demais ao fogo, podendo até perder a consciência rapidamente. Reduzi totalmente as manetes de potência, coloquei as hélices em passo máximo e com a cabeça ainda de fora para ver e controlar a altura, empurrei o manche todo para frente, iniciando um mergulho acentuado. O Camarotti, que desde o início fora expulso de seu posto pela fumaça, antes de sair teve a presença de espírito de baixar os flutuadores de ponta de asa. Isso ajudou muito, pois reduziu a aceleração do mergulho pela sua resistência ao avanço.

 Nada do que ocorria lá atrás eu podia ver. Imaginei mesmo que não haveria sobreviventes. Depois me foi relatado pela tripulação que quando mergulhamos todos já se encontravam na cabine traseira de passageiros, onde o fogo não chegara. Também naquele momento, junto à porta de saída que ele abrira para tentar esgotar a fumaça, o comissário Branco, homem calmo e suave, pai de quase uma dezena de filho e com apenas um metro e meio de altura, ainda teve que desesperadamente segurar um passageiro com o dobro de seu peso que, em pânico, queria saltar pela porta aberta. Felizmente conseguiu dominá-lo.

 Com a proa do avião apontando diretamente para uma das lagoas, a vi crescendo aos poucos à medida que baixávamos. Meus ex- -instrutores de voo se soubessem o que estava ocorrendo naquele instante, sentiriam com certeza um calafrio, pois eu nunca fora muito brilhante em pilotagem de precisão. O chão ia crescendo mais e mais, e eu procurava avaliar o melhor possível a altura que estávamos, pois além de não poder contar com os instrutores do painel, que não conseguia ver, o pouso seria sem trem de aterrisagem, com mínima margem de erro, portanto. “Ainda não está na hora” – pensei.

 Senti uma sacudidela nos comandos, era o Pina. Respondi sacudindo o manche também. Depois, já hospital, ele me explicou o que ocorrera:

 – Eu também estava com a cara de fora para respirar. Quando vi a proa do avião apontar para o chão e aquela lagoa subir em nossa direção, pensei que você tivesse desmaiado em cima do manche. Como não enxergava nada dentro da cabine, o jeito foi sacudir.

 Minha orelha esquerda ardia demais, pois mesmo recebendo um impacto de ar no rosto, ele criava uma diferença de pressão entre a cabine e o exterior, ocasionando a saída de fogo e fumaça por trás de minha cabeça. Por isso, hoje me falta um pedacinho da orelha esquerda.

 Olhando o chão calculei que estava chegando a hora. Respirei fundo, tirei a cara da janela e comecei a puxar o manche devagar, desfazendo o mergulho. Deixei por conta da sensibilidade de minhas mãos o controle da velocidade, já que não podia ver o velocímetro. O comando veio devagar até meu peito, atingindo o fim de seu curso. E o chão não chegou. Esperei um pouco e nada.   “Errei. Puxei cedo demais.”

 Sabia que estava perdendo velocidade rapidamente e quando chegasse à mínima, perderia a sustentação. E se estivesse mais alto do que imaginava, teria um violento choque com o solo. Se aumentasse a potência para manter a velocidade, poderia atravessar completamente a área limpa da lagoa, alcançando o terreno arborizado antes do pouso, com consequências imprevisíveis. Se tentasse manter a velocidade com o comando, baixando o nariz do avião, e caso estivesse muito baixo, atingiria o solo numa posição perigosa e com violência.

Quando já estava ficando impaciente pelo fato de o avião flutuar tanto – eu esquecera que havia deixado as hélices em passo máximo e logo quase sem resistência ao avanço, por isso flutuava tanto –, e antes que eu fizesse alguma asneira qualquer, comecei a ouvir o ruído da quilha deslizando pelo chão, mas com uma suavidade tal que nem quis acreditar. “Acertei, acertei em cheio!”

Após deslizar alguns segundos, o avião parou abruptamente, fazendo com que eu fosse projetado para frente, com uma tendência centrífuga para a direita. Isso me levou a bater ligeiramente com o rosto no comando da direita.

Dias depois, ao me visitar no hospital, o senhor Abel de Oliveira, chefe do Serviço de Manutenção do Setor Amazônico da Panair do Brasil, que esteve no local para colher dados para a comissão de inquérito sobre o acidente, deu-me a explicação ao deduzir pelo que viu lá:

– O pouso foi perfeito. O avião deslizou sobre a quilha, em linha reta, cerca de 70 metros. Então, o flutuador da asa direita tocou o solo, sendo arrancado. O impacto levantou a asa direita fazendo a outra descer. O flutuador esquerdo apoiou-se no chão, não sendo arrancado devido à velocidade já reduzida, servindo porém como freio na ponta da asa e obrigando o avião virar para a esquerda, fazendo um ângulo de 80 graus. E assim parou.

Pensando nos tanques que ainda tinham muita gasolina e no fogo que agora, embora sem a violência inicial, se alastrava por todo avião, soltei o cinto de segurança e tentei abrir a janela, que não sei como se fechara durante o pouso, para saltar. Estava emperrada. Olhei para a direita e através da névoa amarelada que substituira a fumaça, percebi que o Pina já havia saltado. Sua janela lateral e a saída do teto estavam abertas. Não esperei mais. Levantei-me e mergulhei pela janela. Caí de cara no barro, esfolando a testa e o nariz. À minha direita, rente ao chão, girava a hélice do motor direito.  “Droga, esqueci de desligar os magnetos.”

Levantei-me e corri rodeando o avião pela direita, ao mesmo tempo que chamava o Pina, que me esperava a alguma distância. Ao meu encontro surgiu uma passageira. Estava descalça, na confusão perdera os sapatos:

– Comandante!… Comandante!…

A sua expressão era um misto de gratidão e horror. Ela queria dizer algo mas não conseguia. Meio encabulado, disfarcei tentando aparentar displicência, como se tudo o que acabara de ocorrer fosse rotineiro:

– Já passou tudo. Vamos juntar o pessoal e continuar nossa viagem a pé.

– Mas, comandante, a sua camisa… As suas costas… Está todo queimado.

Seu olhar continuava com uma certa dose de temor, como se eu fosse um marciano recém desembarcado de um disco voador. Concluí que devia estar com uma aparência assustadora. Comecei a sentir uma ardência forte em minhas costas que aumentava de intensidade pouco a pouco. Passei a mão no rosto. Estava esfolado e sangrando. Senti a cabeça doendo e apalpei-a com cuidado. Meus cabelos eram uma massa compacta grudada à cabeça e se esfarelavam ao menor contato. A brisa que soprava trouxe-me um cheiro de carne e cabelos queimados. Dos meus cabelos. Da minha carne.

Mais calma e como que frustrada por não ter meios de me ajudar, a passageira continuou:

– A sua camisa não tem mais as costas.

O Pina nos alcançou. Tinha as mãos e a cabeça bastante queimadas.

–  Rapaz, que lenha. Desta vez a bruxa passou perto.

 Eram 9h59 pelo relógio do Pina. O tempo total de Inferno fora de oitenta segundos.

 Ainda conversando e muito excitados, o que era natural dado as circunstâncias, eu e o Pina rodeamos o Catalina pela ponta da sua asa direita e avistamos um grupo de passageiros com o comissário Branco e o mecânico Camarotti. Todos ilesos. Com eles estava também o rádio-operador Magno que surpreendentemente não se transformara em torresmo – a explosão se dera ao seu lado. Ele estava com os braços um pouco queimados, os olhos muito afetados pela fumaça e uma única fratura, que ocorrera durante o acidente: ao saltar do avião já parado, trincou um ossinho de um dos pés, por isso mancava ligeiramente. Além dele, teve uma passageira com pequenas queimaduras no rosto e o nariz chamuscado e outro, de bruços no chão, terrivelmente queimado.

 – Estão todos aqui? – perguntei ao Branco.

 – Sim. Já conferi – respondeu.

 – Tem certeza? – insisti.

 Contou-os de novo, e eu acompanhando.

 – Nove passageiros. Confere, estão todos aqui.

 – E a passageira com as duas crianças?

 – Desembarcou em Maués.

 Olhando o passageiro no chão, continuei:

 – Conseguiu tirar as caixas de medicamentos de bordo?

 – Não foi possível.

 – Eu estava ocupado segurando aquele passageiro que queria saltar ainda em voo logo que abri a porta para sair a fumaça, respondeu apontando um dos passageiros.

 Olhei novamente o passageiro no chão, o sr. Ozete Mamede. Descendente de imigrantes que, como os portugueses, não se concentrou em núcleos fechados em regiões restritas do Brasil, chegou, viu a nova pátria e ignorando deliberadamente a sua extensão, espalhou-se e cobriu-a inteiramente com seu trabalho fecundo, com a mesma eficiência que o faria em sua pequenina pátria de origem, o Líbano. Ali, no imenso estado do Amazonas, estava o representante dessa nobre raça, embora por obra do destino em precárias condições. Sua condição me pareceu desesperadora. Deitado de bruços, apoiava-se sobre a barriga as pontas dos pés e os cotovelos. Sua espinha dorsal estava arqueada num esforço inconsciente de livrar o peito e o rosto, muito queimados, do contato áspero com o chão. Mãos e antebraços, ambos queimados, evitavam igualmente esse contato, apontando grotescamente para cima. Ele precisava de cuidados médicos imediatos.

 Olhando o avião, notei que o motor direito também parou de funcionar. Naquele momento, pensando apenas no ferido, na caixa de medicamentos que estava a bordo e sobrecarregado pelos últimos acontecimentos, tive uma “pane” na cabeça que poderia ter custado a vida de dois tripulantes. Chamei o Camarotti e o Branco e disse:

 – Aproveitem agora que os motores pararam e vão buscar a caixa de medicamentos.

 Sem titubear correram em direção ao avião. De imediato voltou-me a lucidez: “O avião já está em fogo. E a gasolina – cerca de 350 galões – ainda está lá. O que é que os motores têm com isso, parados ou não?”

 Felizmente a campainha de alarme do subconsciente soou a tempo.

 – Voltem!

 Eles me ouviram e voltaram.

 – Não dá. Não vale a pena o risco. O avião pode explodir com vocês lá!

 “E agora, o que eu faço?”, me perguntei olhando em volta.

 Quase todos me olhavam interrogativos. “Será que pensam que não aguentarei muito tempo em pé? Ou esperam que eu ache uma solução? O passageiro queimado aguentará até o socorro chegar?”

 Mas a estrela que me protegia naquele dia ainda tinha surpresas para mim. Ao largo, a pequena distância, olhando-nos curioso, estava um caboclo a cavalo em sua faina diária de levar umas vacas de um lugar pro outro. Era uma esperança, talvez a solução. Chamei-o. Olhou-me. Olhou suas vacas. Olhou-me novamente. E outra vez suas vacas, como que em dúvida se deveria ou não abandoná-las. Chamei-o novamente. Decidiu-se e veio. Quando chegou, perguntei:

 – Parintins fica muito longe?

 – Não muito.

 – Você pode ir lá e arranjar um carro que venha nos buscar?

 – Carro não chega até aqui.

Conhecendo bem o terreno da Amazônia, alagadiço em grande parte do ano, entendi logo. Não poderia haver estrada de Parintins até ali.

 – E cavalos, você arranja?, insisti.

 – Por aqui é difícil. E demora muito chegar lá a cavalo. É uma volta bem grande.

 – Como poderemos ir então? Aquele moço precisa de médico logo. E apontei para o passageiro no chão.

 – Melhor ir até a casa do senhor João Nossa, meu patrão e dono desta fazenda. Fica na beira do rio e lá passa muito barco. De barco leva meia hora até Parintins.

 – Quanto tempo até a casa do seu patrão?

 – A pé, uma hora ou menos.

 – Você pode nos levar?

 Ele olhou em direção às vacas, meio hesitante após um momento, e decidiu-se:

 – Levo.

 Pareceu-me que naquele dia, afora a explosão com incêndio, tudo o que nos aconteceu foi sorte em cima de sorte. Entre tantas, duas bem importantes: 1ª) Achar uma ótima área de pouso, em meio à selva amazônica, exatamente na hora que precisávamos dela.  2ª) O próprio pouso, sem trem, sem poder ver os instrumentos e apesar de quase todos a bordo estarem sem cinto de segurança e em pé, fugindo do fogo, ter sido completado sem nenhuma fratura por menor que fosse. Não creio que nenhum piloto do mundo poderia dizer que fez isso tudo conscientemente. E não serei eu que o direi. Apenas aconteceu.

 De todas as instruções para os casos de acidentes em aviões, a mais importante é a de permanecer juntos aos destroços até que Serviço de Busca e Salvamento (SAR) da FAB os encontre. Mas, considerando a necessidade urgente de cuidados médicos para os feridos, o Mamede principalmente, e a relativamente curta distância que estávamos de uma povoação, onde por menor que fosse encontraríamos algum recurso médico, decidi que seguíssemos imediatamente para lá, feridos inclusos, já que o caboclo nos guiaria.

 Aproximei-me do Mamede e disse:

 – Não desanime agora, pois teremos que caminhar um pouco.

 Mãos, rosto e peito afastados do chão por causa das queimaduras, apoiando-se na barriga e cotovelos, pareceu não entender o que lhe dissera. Falei-lhe novamente com a esperança de alguma reação, pois pareceu-me que caminhando ele sofreria menos do que se fosse transportado. Estava bem calçado e o fogo não o atingira abaixo da cintura. Dessa vez me ouviu e respondeu:

 – Está bem. Mas me ajudem a levantar… Eu não posso… Minhas mãos!

 Dois passageiros segurando-o pelas axilas, puseram-no em pé cuidadosamente. Estava ainda um pouco tonto. Logo, buscando energias não sei de onde, pareceu melhorar.

 – Para que lado vamos? – quis saber.

 – Aquele caboclo nos levará a Parintins. Deve ser meia hora mais menos – menti.

 – Será que você aguenta andar um pouco?

 – Acho que sim. Vamos embora!

 E começou a seguir o vaqueiro que já se afastava. Impressionante a sua figura. Braços imóveis enquanto andava, afastados do corpo para não roçar, ligeiramente arqueados, parecia um estranho pássaro tentando levantar voo. Cabeça fixa e sem movimento, também projetada para frente, como a querer livrar o contato do queixo com o peito. Pedaços de sua camisa grudados às costas. O resto, incluindo a cabeça, era pele despedaçada pelo fogo e a carne já dessorando abundantemente.

 Chamei a tripulação para uma rápida conferência e distribuição de tarefas, pois temia perder a consciência antes de chegarmos a Parintins. Ao Camarotti e ao Branco, ambos ilesos, determinei que ficassem no local até que o fogo apagasse para evitar que algum curioso, ignorando o perigo de explosão, se aproximasse do avião. Ao Magno disse:

 – Procure chegar o mais rápido possível a Parintins. Não se preocupe se eu e o Pina nos atrasarmos. O mais importante é você chegar lá e tentar comunicar-se, por qualquer meio, com a Chefia de Pilotagem em Belém. Conte o que aconteceu sem exageros, assegure que não houve mortos e descreva o tipo e a gravidade dos ferimentos para que venham preparados. Eu e o Pina iremos como pudermos, se ficarmos para trás o Camarotti e o Branco nos ajudarão.

Começamos a andar seguindo o Mamede que já se distanciava, acompanhando de perto o caboclo. Os outros vieram atrás.

Avançamos em linha reta até a orla da lagoa seca, onde pousáramos. Daí, contornamos uma ponta de mato, acompanhando mais ou menos a margem de um pequeno rio que deságua próximo a Parintins. Felizmente, naquele trecho descampado, estivemos protegidos do sol por uma camada de nuvens. Foi bom, pois o sol aumentaria o sofrimento das queimaduras. A ordem da marcha começou a se definir. Na frente, o caboclo com o Mamede logo atrás que, numa marcha forçada e espantosa, devido às suas condições, conseguiu adiantar-se uns duzentos metros dos outros. Tempos depois, visitando-o ainda no hospital, me dissera que daquela caminhada só se recordava que queria chegar. E falava ao caboclo a cada minuto:

– Mais depressa!

O grupo seguinte era eu, o Pina, o Magno e a passageira que encontrei logo que saltei do avião. Esta estava descalça e o caminho era áspero. Pensei nos meus sapatos. “Besteira!” – eu não estava em condições para cavalheirismos.

Nós também andávamos depressa, mas não conseguíamos acompanhar o grupo da frente, daí a distância entre nós aumentar.

 Fechando a marcha, vinha o terceiro grupo, mais descansado: o restante dos passageiros que, além do susto, nada havia sofrido e talvez por isso vinha a passo normal e provavelmente, o que é natural, comentando sobre o ocorrido.

Sentia uma ardência generalizada nas costas e orelhas. Minha cabeça começou a doer. Para não aumentar o sofrimento procurava andar sem movimentar os braços. Tirei o que sobrou da minha camisa, pois não mais me protegia e havia o risco de grudar alguns pedaços dela na carne viva das queimaduras. Olhei-a curioso. Dela só restava o colarinho, a frente e as mangas, e substituindo as costas havia um furo orlado de fuligem. Pensei em joga-lá fora. “Será bom tê-la como recordação.”

Pendurei-a no cinto e retomei a marcha. O sol, através de algumas brechas na camada de nuvens, castigava-nos terrivelmente. Parecia-me ter andado mais de uma hora. O Pina, com relógio, informou:

– Só meia hora.

Ao contornarmos uma ponta de mata vimos uma cabana. Ali morava outro empregado da fazenda. Encontrei o Mamede já sentado num banco comprido sem espaldar, sob uma grande árvore, ao lado da cabana. De seu rosto escorria um líquido gelatinoso e translúcido que lhe grudava as pálpebras sem pestanas. Era a carne sem pele dessorando. Tentei falar-lhe, mas não me atendeu. Talvez estivesse em choque. Ao seu lado, atarantadas, sem saber o que fazer, estavam a mulher e a filha do caboclo que ali morava, ausente no momento.

– Por favor, arranjem água para beber. Muita água!

Trouxeram uma cabaça cheia. Olhei e achei graça ao lembrar-me das recomendações do serviço médico da Panair: “na Amazônia só bebam água tratada” –a água era amarela. Mas era água e nós precisávamos dela. Chamei o Pina e disse:

 – Vê se consegue fazer o passageiro beber. O máximo que puder.

 Nas primeiras tentativas ele vomitou tudo que bebeu. Finalmente depois conseguiu beber alguma água. Bebi também tudo o que pude. Notei que o Mamede não conseguia enxergar por ter suas pálpebras grudadas. Ele não poderia andar mais. Perguntei ao caboclo, nosso guia, se poderia conseguir um cavalo para levarmos o passageiro.

 – Está bem, acho que arranjo um.

 Aumentou minha dor de cabeça. Resolvi descansar até a volta do guia com o cavalo. Pedi à cabocla um lençol para estender no chão e deitar-me de bruços.

 – Nós não temos lençol, não, moço.

A vontade de ajudar daquela gente só era ultrapassada pela sua pobreza. Quando já resignado me preparava para deitar no chão de terra batida, ela lembrou que eu poderia usar a porta da cabana, uma espécie de painel feito de folhas de palmeiras trançadas mal amarrado à entrada da cabana, que saiu facilmente. Deitei-me sobre ele usando os farrapos de minha camisa como travesseiro.

O Pina tinha conseguido uma vasilha com leite e estava derramando-a sobre suas queimaduras para aliviar a dor. Depois veio oferecer-me. 

– Quer um pouco também?

– Bota no passageiro.

– Já botei, este sobrou para você.

Lembrei-me dos meus tempos de menino, numa fazenda em Mato Grosso. Passara uma noite inteira com o pé mergulhado em leite por causa de uma queimadura.

– Derrama somente nas costas.

Apesar de a cabeça doer, não quis leite nos cabelos ou o que restava deles, pois não sabia quando poderia lavá-los.

– Arranja mais água e põe na minha cabeça. Está doendo muito.

A água fresca aliviou bastante a dor e permitiu que eu descansasse um pouco. Pensei em dormir, mas não consegui. A satisfação gratificante de me sentir vivo e forte, apesar de muito arrebentado pelo fogo, não me permitiu dormir. Passava e repassava o que acontecera nas duas últimas horas e mal acreditava. Embora bastante queimado física e, de certa forma, psicologicamente, eu me sentia bem. No fundo, o pensamento de rever meus familiares me deixava mais confiante. Até ali a sorte me ajudara o bastante para me portar de maneira que lhes daria orgulho.

O terceiro grupo chegou à cabana. A que queimara o nariz ligeiramente estava descalça. Os outros, todos ilesos e bem calçados. Perguntaram-me se podiam ajudar de alguma forma. Disse-lhes que se dividissem em dois grupos. Um prosseguiria imediatamente para providenciar socorro em Parintins. O outro ficaria para nos ajudar.

– Dois de vocês deverão acompanhar aquele passageiro – apontei para o Mamede –, um de cada lado. Ele irá a cavalo e do jeito que está poderá cair. Cuidem para que nada aconteça.

Algum tempo depois o caboclo guia voltou com mais dois cavalos.

– Consegui um para o senhor também – falou.

– São mansos?

– Sim.

– Bem, vamos usar um só. Eu vou a pé.

Montara em algumas ocasiões, quando menino, mas não quis arriscar. Ofereci para a passageira descalça. Ela também recusou, dizendo preferir andar.

Não havia mais nuvens no céu e o sol de meio-dia tornou-se um problema para aqueles com queimaduras. A cabocla moradora na cabana emprestou-nos dois cobertores de algodão para minha proteção e do passageiro ferido.

O Mamede foi colocado num dos cavalos e sobre ele um dos cobertores. Dois homens, um de cada lado, para protegê-lo em caso de queda e um terceiro, puxando as rédeas, recomeçaram a caminhada. O caboclo guia na frente, seguido pelo Mamede, em completa fadiga, e seus guardiões.

Peguei o outro cobertor e com o Pina e as duas passageiras reiniciamos a marcha também. Não querendo o contato do cobertor com a pele, pois irritava as queimaduras nas costas, segurei-o por duas pontas bem acima da cabeça. A brisa agradável que vinha ao nosso encontro encarregou-se de mantê-lo flutuando, protegendo-me do sol sem roçar nas queimaduras.

A cabeça voltou a incomodar com o movimento da caminhada. Latejava. Uma dor intermitente e monótona que começava na nuca e ia explodir nas têmporas. Nas costas e braços só sentia uma ardência como de pele esfolada, perfeitamente suportável e que me levou a crer que eram superficiais as queimaduras, por isso me despreocupei. Mais tarde, no hospital, constatou-se que eram realmente profundas. A cicatrização completa demorou dois meses, e um ano após submeti–me a uma pequena cirurgia restauradora nas costas.

A dor deve ter um limite que ultrapassado deixa de ser sentida. E isso deve ter ocorrido quando preocupado em botar o avião no chão não tinha tempo de pensar em dor.

Meus braços começavam a entorpecer e pesar mais e mais para mantê-los esticados, segurando o cobertor acima da cabeça. De tempos em tempos, vinha uma das passageiras saber se eu precisava de alguma coisa. Quando a brisa amainou, elas seguraram as pontas do cobertor para evitar o contato com as minhas costas. A um observador desavisado aquilo tudo deveria parecer um cortejo bem fora do comum: o caboclo guia, o grupo do Mamede e nós. À nossa frente surgiu um pequeno prado, no outro lado, a 500 metros mais ou menos, tinha uma cabana maior que a anterior, com um curral ao lado.

– Ainda não é a sede da fazenda – disse uma das passageiras que era moradora na região e conhecia o local.

– Aí mora um outro empregado. Mas já estamos perto.

Atravessamos o prado. Vieram alguns homens em nossa direção, dentre os quais o senhor João Nossa, proprietário da fazenda.

Chegando à cabana, pedimos água. Não era cristalina, mas bem melhor que a anterior. Bebi o quanto pude com muito prazer. Depois derramei na cabeça. Atenuou a dor.

Ao lado da cabana, havia um córrego que tínhamos que atravessar para prosseguir. Era estreito e raso. A travessia podia ser feita por uma tábua, à guisa de ponte sem corrimão. Temendo pelo meu equilíbrio, um dos homens levou-me pela mão. O Mamede, que nem desmontou, teve seu cavalo guiado para vadear o córrego. Dois homens o acompanharam por dentro d’água, cuidando-o.

Com dois caboclos segurando o cobertor, protegendo-me do sol, prosseguimos em direção à casa do senhor João Nossa, que, ao meu lado, garantiu-me que era perto. Disse também que os primeiros passageiros e rádio-operador Magno já haviam embarcado para Parintins há mais de 40 minutos e que já deveriam ter chegado lá e o socorro portanto não tardaria. Aproveitei e pedi que mandasse alguém até o local do pouso forçado para guiar de volta os dois tripulantes que lá ficaram. Deveria ter terminado o fogo, pois lembrei-me então que não ouvira explosão da gasolina. Perguntei ao Pina e ele também não ouvira.

Mais de 20 minutos de marcha e chegamos à fazenda. Dava de frente para um rio, onde havia um cais para pequenas embarcações. Dali prosseguiríamos rio abaixo até o seu encontro com o colossal Rio Amazonas. Seguiríamos por ele abaixo, junto à sua margem direita, até Parintins. Meia hora de lancha, me fora informado. Sentia-me cansado e ainda com dor de cabeça. Bebi mais água e refresquei a cabeça outra vez. O senhor João Nossa ofereceu-me analgésicos, os quais aceitei. O Mamede foi acomodado, sentado numa rede, pois não podia deitar-se, seu estado era desolador. Não entendia o que estava se passando.

Não podendo fazer nada senão esperar o barco que traria socorro e nos levaria, e cansado ao extremo, com náuseas, deitei-me de bruços na varanda assoalhada com tábuas. Procurei descansar e dormir – agora era questão de paciência. O tempo foi passando sem eu perceber. Acho que cochilei, pois só atinei quando avisaram que o barco chegara. Levantei-me ainda tonto. O cheiro de carne queimada era insuportável. O barco atracou e o representante do Panair desceu e veio ao meu encontro.

– O médico que temos, o doutor Gerson, não se encontrava perto, mas já mandei avisá-lo e não deverá tardar. Quando quiserem poderemos ir – disse-me num fôlego só.

– Ok, ponham a bordo o passageiro ferido. Depois nós embarcaremos.

Também determinei:

– Providencie um homem que fique guardando os destroços do avião.

Enquanto embarcavam, agradeci ao senhor João Nossa e lhe pedi que mandasse devolver os cobertores.

Todos a bordo, o barco começou a movimentar-se. Perguntei ao representante da Panair se em Parintins havia acomodações para os feridos. Disse-me que tinham acabado de inaugurar um pequeno hospital do S.E.S.P e que ainda estava vazio.

– Bom. Logo que estejam acomodados, entre em contato com a carga que embarcou no meu voo esta manhã. Quem expediu, o que continha, o destinatário e o mais que pudesse ajudar na investigação.

– Ok – e prosseguiu:  

– O Magno já está tentando falar com a Chefia de Pilotagem em Belém, por meio de um rádio amador local.

Naquele momento, na realidade, ele já estabelecera contato com um navio em trânsito pelo Rio Amazonas, que retransmitiu tudo para Belém. A Chefia de Pilotagem, que já acionara o Serviço de Busca e Salvamento da FAB, ainda teve tempo, antes da decolagem do Albatroz, de comunicar-lhes o local onde estávamos e a natureza dos ferimentos, o que facilitou muito.

– Bem, agora deixe-me descansar um pouco.

Sentei-me num banco pois a dor de cabeça insistia demais. Posteriormente, soubemos que da carga que explodiu somente se conseguiu apurar que fora embarcada no Rio de Janeiro num Constellation (L-49) da empresa até Manaus, onde reembarcou.

Pouco depois senti que o barco reduzia a marcha e parou.

– É o doutor Gerson! – alguém gritou.

Um barco encostava ao nosso para abordar. Um homem jovem vestindo avental branco nos olhava com muita expectativa. Era o médico. “Bom – pensei –, agora o problema é dele.”

Vieram com ele duas enfermeiras. Já no nosso barco, o médico dirigiu-se ao Mamede e começou a cuidar dele. Chamou uma das enfermeiras e disse-lhe algo. Ela dirigiu-se a mim com uma seringa na mão.

– Isso me fará dormir? – perguntei.

– Não. É só para aliviar a dor – e espetou a agulha.

Tinham trazido duas macas e colocaram o Mamede numa delas. Não aceitei a outra porque só poderia deitar de bruços e isso seria mais incômodo do que andar. A passageira do nariz queimado aceitou a maca. Tinha aspirado muita fumaça e estava um pouco tonta. Outra enfermeira, também armada com uma seringa, atendia o Pina.  

Chegando a Parintins, passamos direto sem nos aproximar do cais. Explicaram:

– Vamos atracar no outro extremo da cidade que é mais próximo do hospital. Como não temos ambulância nem carro disponíveis, assim é melhor.

A multidão que esperava no cais, frustrada, começou a se deslocar ao longo da margem, acompanhando-nos até o local de desembarque. Quando chegamos, desceram a maca com o Mamede por um pranchão que ligava o barco à margem. Depois a maca da passageira. Deram-me um guarda-chuva e outro ao Pina, para nos proteger do sol.

Acompanhei atentamente a descida do Pina, olhando o pranchão que oscilava com o movimento da embarcação. Alguém viu minha indecisão e deu-me uma mão.

Começamos a subir a barranca em direção ao hospital. Gente por todos os lados. Todos muito sérios. Vendo o Pina à frente, tentei imaginar minha aparência: cara esfolada e enegrecida pela fuligem, costas e braços queimados, a camisa em farrapos, pendurada no cinto e um guarda-chuva. Trágico, mas muito engraçado.

Assim, entre o abre-alas do povaréu curioso, os olhares assombrados dos garotos, e achando uma certa dose de comicidade naquilo tudo, chegamos na porta do hospital onde as enfermeiras nos esperavam, nos conduzindo para os cuidados médicos necessários.

Pelo testemunho de dois tripulantes que deixei junto ao PP-PCY, que continuava queimando ao abandoná-lo, o hidroavião pegou fogo devagar sem explodir, embora estivesse ainda com muito combustível ainda. Quando o fogo chegou ao tanque, apenas aumentou de intensidade. As únicas coisas que explodiram foram os pneus e as 50 balas do revólver que faziam parte do equipamento de sobrevivência na região Amazônica.

Embora até os farrapos de minha camisa tenham sido investigados em laboratório, não se chegou à conclusão da origem da explosão e o consequente incêndio. Há uma suposição que se tratava de uma pequena quantidade de magnésio, pois na época era ainda utilizado como flash pelos fotógrafos do interior. Esse material se inflama também em contato com a água e havia sempre um pouco de água residual acumulada no fundo dos cascos dos hidroaviões. O senhor Abel Oliveira, chefe do Serviço de Manutenção em Belém na época, que foi ao local do acidente para iniciar a devida investigação enquanto esperávamos o pessoal especializado da FAB, trouxe-me como recordação dois pedaços de tela da cauda do PP-PCY com o símbolo da Panair estampado neles. O Catalina era em parte revestido com tela: os ailerons, o bordo de fuga das asas e a empenagem de cauda. Inacreditavelmente o fogo não chegou à cauda, nem fuligem aqueles pedaços de tela tinham. Como havia dito, o fogo foi lento após o pouso, só se intensificando ao chegar ao tanque de combustível, diminuindo outra vez quando a gasolina terminou, se extinguindo devagar antes de chegar à cauda. O pouso em si não danificou o avião que deve ter tocado o solo com a sua quilha com menos de 35 nós e, apesar de totalmente às cegas, com as asas niveladas. Repito: mérito, um pouco, sorte muita. Se houvesse quem apagasse o incêndio na ocasião, teria sido facilmente recuperado. A única parte danificada foi um dos flutuadores, arrancado ao tocar no solo no momento que, perdendo a velocidade, desnivelou-se.

Da tripulação só tenho a dizer que se algum outro piloto se encontrar em alguma ocasião em situação semelhante, o que não desejo, espero que tenha a sorte de contar com uma igual a minha, pois melhor não acho fácil de encontrar. O piloto Pina, que quando estava em dúvida, pois não nos enxergávamos devido à fumaça na cabine, para saber se eu estava bem, movimentou e confiou em mim até o chão. O rádio-operador Magno, que se encontrava junto ao local de início do fogo e saiu dali com queimaduras nos braços e os olhos muito afetados pela fumaça, mas embora mancando por fraturar um ossículo do pé ao saltar do avião, chegou a Parintins e por intermédio de um radioamador conseguiu comunicar-se com Belém antes que o Albatroz do SAR, já acionado, decolasse. Com isso ganhou tempo e qualidade para o atendimento do SAR. O mecânico do voo Camarotti, que após a explosão foi expulso de sua torre invadida por densa fumaça, porém antes comandou os flutuadores para baixo para o caso de serem necessários. Depois desceu da torre, já com um extintor na mão e começou a combater o fogo, utilizando depois outro extintor até gastá-lo todo. E quando procurava um terceiro extintor, percebeu que já estávamos parados em solo e então começou imediatamente a ajudar o comissário na evacuação dos passageiros. O comissário de bordo Castelo Branco, que para esgotar a fumaça que encheu as cabines de passageiros abriu a porta de acesso localizada na cabine traseira e logo a seguir teve que se atracar com um passageiro apavorado queria saltar ainda em voo, mas felizmente conseguiu segurá-lo. Para eles o meu eterno agradecimento, sem eles talvez tivesse sido diferente.

Sítio do Cachorro Morto – 10/02/96

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