Daniel Senise

A Emergência do Represado

Marcio Doctors

Texto publicado no catálogo geral da 18ª Bienal de São Paulo “O homem e a vida”, em 1985.

 

O esforço pictórico de Daniel Senise caminha na direção de fazer emergirem à superfície artística percursos que de outra forma estariam anestesiados no discurso da História da Arte. Empenha-se em abrir as comportas dos diques da história, deixando que sentidos represados invadam e contaminem nossa atualidade. Exercita uma circularidade discursiva que não alija o passado da arte enquanto acontecimento isolado no tempo ou enquanto momento de um porvir necessário, para absorver-se nele como possibilidade discursiva; como forma de reinvenção. Ao usar a linguagem pictórica do expressionismo, a simbologia surrealista ou a noção de volume de um cubismo à la Tarsila ou Léger, não está sendo nem expressionista, nem surrealista e nem cubista no sentido tradicional. Está, sim, tomando posse de sua própria narrativa de vida que se espelha e encontra seu fundamento no momento mesmo em que a obra vai se configurando à sua frente. É como se não houvesse uma antecedência de intenções: não há recorrência a esses movimentos como pontuação de erudição, mas como possibilidade de existência de sua obra.

Senise executa através da pintura sua autobiografia. Não como forma de narrativa pregressa ao modo dos memorialistas, mas no sentido de vê-la constituir-se a partir do auto reconhecimento que a aparição da forma propicia; como se o exercício da pintura lhe segredasse os mistérios de sua existência. Assim, os “símbolos” que escolhe, como o peixe, o bule, a hélice, a concha ou o cavalo, que poderiam ser lidos a partir de uma ótica surrealista, são transformados em vocábulos visuais indicativos de amarras de sua vida. Deixam de ser símbolos para tornarem-se evidências: emblemas de sua existência. Da mesma forma, por uma estratégia de pequenos deslocamentos, seu expressionismo é alguma outra coisa que não propriamente uma linguagem expressionista. O expressionismo é uma forma pictórica que achata a imagem para ganhar em evolução no espaço da fluência contínua dos movimentos do corpo nas marcas de tinta na tela. Mas Senise é um apaixonado pelo volume. Surpreendemos, então, que o expressionismo aqui funciona como uma capa que esconde o que a linguagem do volume poderia tornar evidente: seus emblemas. Há uma espécie de camuflagem, como se quisesse fazer a figura diluir-se na abstração e reconstituir-se a partir dela através de uma outra mirada. Nesse ponto Daniel define seu trajeto: o expressionismo deixa de ser uma linguagem da evidência das emoções para assumir a forma de uma linguagem simbólica, de véu que esconde a emoção, que se encontra contida na lembrança do emblema. Sua obra exige uma leitura às avessas: libera o fluxo da tradição e faz com que se embrenhe por novos caminhos; daí a surpresa e a força de suas imagens.

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