Daniel Senise

2892

Daniela Labra

Texto publicado no catálogo da exposição do artista da Casa França-Brasil, Rio de Janeiro, em 2011

Parte I

Naquela tarde de abril relembramos que, em 2001, os mortos no 11 de Setembro em Nova Iorque foram 2.977. Ignorávamos, entretanto, que as vítimas do recente terremoto e tsunami no Japão já somavam 12.876. Números enormes que, encarados como meros dados estatísticos, fazem da tragédia pessoal tábula rasa.

2.892 é a cifra título deste projeto de Daniel Senise e se refere a vivências extremas borradas pelos dados numéricos evocados na obra central da mostra: uma instalação de escala monumental onde se postam face a face duas gigantescas telas feitas com lençóis usados em um motel e no INCA —Instituto Nacional do Câncer do Rio de Janeiro.

Deixando os dramas dos desconhecidos em plano silencioso, Senise obteve, com o auxílio de um matemático, o pragmático cálculo de pessoas que passaram pelos lençóis ao longo de sua vida útil de seis meses, em ambos os estabelecimentos. Assim, chegou aos títulos de cada uma das faces da instalação: Branco 462, referente à movimentação no hospital, e Branco 2430, no motel. Somadas, essas cifram atingem então os 2.892.

Mas sabemos que Daniel Senise não é exatamente um artista fascinado por números, sua pesquisa investiga fundamentalmente o universo da pintura, embora há muitos anos não trabalhe como pintor no sentido estrito. Ainda lembrado como expoente da Geração 80, iniciou, no final daquela década, um caminho que se mostrou constante na busca por métodos próprios para discutir temas do meio pictórico, tais como a sua história, a fatura, textura, materialidade, e principalmente a noção de representação e o lugar da pintura na contemporaneidade, entre outros aspectos.

Em 2.892, como em outras mostras, o artista escolhe objetos mundanos e preserva (ou forja) as marcas do tempo entranhadas na matéria perecível e, assim, aprisiona em suporte artístico as memórias de materiais comuns e gastos transfigurados em obra de arte. Intervindo minimamente nas superfícies de que se apropria, Senise permite que as marcas de uso gerem uma estampa própria, como no caso dos lençóis. Nestes, remendos e manchas fazem saltar imagens mentais de estórias anônimas sem que haja nenhum tipo de ilustração — o que confere uma narratividade peculiar à instalação.

Ao se distanciar do processo pictórico habitual, Daniel Senise alcança hoje formatos que se esquivam da literalidade. Assim, por oposição formal, comenta questões relativas à pintura e à representação do mundo dispensando a figuração, veiculando reflexões acerca do binômio natureza-cultura tanto nos alvos lençóis puídos como na massa acinzentada de papéis reciclados.

Este é o caso de Mil — a milésima obra produzida pelo artista — que vem a ser uma série de relevos compostos por tijolos feitos de convites e catálogos de exposições reciclados, cuja disposição nas paredes sugere quadros pendurados. O título celebra e ironiza o alcance do primeiro milhar de obras ao mesmo tempo que questiona o excesso de informações e imagens impressas em papéis despejados pelo sistema da arte, cujo conteúdo em demasia se torna apenas ruído acrítico.

Além dos trabalhos até aqui comentados, a questão da narratividade e da representação é também esgarçada em diferentes propostas e formatos em outras duas obras, o que confere coerência e dinamismo à mostra.

Em Crucifixão, vê-se a página impressa de um livro de arte de 1952 com a legenda descritiva de uma terceira obra, homônima e ausente, inserida em um nicho desenhado em perspectiva. Aqui, Senise lida com recursos ilusórios e aponta a desfuncionalidade desse texto descritivo como o lugar que engendra o trabalho. Se nos demais casos o acúmulo de informações e memórias cria um emaranhado impenetrável, desta vez a legenda separada da referida imagem faz com que ela própria se torne a obra e a imagem.

Por último, a sequência de impressões fotográficas intitulada Rua Silvio Romero, 34 dez/2009 é a que comenta sobreposições temporais no processo de criação de modo mais evidente. Nesta série, cinco fotografias idênticas do ateliê do artista, reveladas em cores esmaecidas, são pisoteadas e sujas, assinalando o gesto humano sobre a imagem construída.

O título descritivo do trabalho escancara a crise da representação na arte, enquanto se observam as camadas de acontecimentos que imprimem a passagem do tempo na superfície do trabalho, evocando, portanto, uma espécie de metarrepresentatividade. Cada fotografia desta série registra no nome o momento em que a imagem foi captada e exibe, em primeiro plano, as pisadas que se somaram posteriormente, provocando, então, um certo choque de temporalidades. Desse modo, a intrusão da vida na arte sugere que o mundo não é mais representado, e sim apresentado na poética contemporânea.

 Parte II

2.892… Em outras tardes em que lembramos de números, também recordamos do processo de negociação feito há 15 anos com os estabelecimentos onde os lençóis seriam usados e depois retornados ao artista.

Embora naquele momento a ideia do trabalho ainda fosse um tiro no escuro, pois se mostrava deslocada da trajetória de Daniel Senise, o contato com o hospital já havia sido feito, mas faltava, no entanto, a negociação com um motel. Essa segunda etapa ficou, então, a cargo de sua assistente na época, que conseguiu fechar acordo para deixar, por seis meses, lençóis novos para uso em um hotel de alta rotatividade na cidade. Os lençóis foram para lá e depois voltaram, usados, para o ateliê do artista, onde hibernaram por vários anos.

Uma década e meia transcorreu até a carreira de Senise atingir o ponto em que finalmente esses materiais puderam ser incorporados ao seu trabalho. Coincidentemente, esse tempo que equivaleu ao período de maturação da ideia em obra foi o mesmo que transformou a ex-assistente do artista em crítica de arte e curadora. Hoje, por causa desses mesmos artefatos, reencontro a carreira de Daniel Senise para, com algum distanciamento, escrever sobre a obra que de certo modo ajudei a construir.

 

 

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