Daniel Senise

XVIII Bienal de São Paulo

Wilson Coutinho

Texto publicado no catálogo da exposição do artista na XVIII Bienal de São Paulo,  em 1985.

Chamei, um dia, a pintura de Daniel Senise de “teatro das sensações mutiladas”. Era a primeira ideia que esta obra feita como se construísse monumentos sombrios, ambientados numa atmosfera de catástrofe e terror noturno, oferecia­-me no seu dispositivo retórico e cenográfico. No entanto, os objetos da percepção de Senise não são nem grandiosos, nem abismais. Ele recolhe para a sua percepção coisas até mesmo negligenciáveis como este imenso cisne — que o artista pintou tendo como modelo um diminuto frasco de perfume — ou entranha nas suas telas figuras ambíguas, cujo sentido não é percebido ao primeiro olhar.

De repente, o mundo de Senise, tão inaproveitável como tema, nos esmaga. Ele pintou imensas hélices de avião e parece ter tornado este objeto tão terrível e tão fantasmagórico quanto os moinhos de D. Quixote, apreendidos num delírio. Todas estas imagens têm algo, são extraídas de acontecimentos psíquicos e biográficos que o artista explora como que se recompondo num teatro, numa cena, de onde o sujeito acabasse de se retirar. Teatro da pintura, com formas fragmentadas que parecem recordar uma peça de Samuel Beckett, onde em cena só existissem corpos mutilados e uma voz off, na linguagem tortuosa, nos oferecesse a presença dúbia e inquietante de algo, ao mesmo tempo, presente e ausente.

Muitas vezes a pintura de Senise assemelha-se a uma serie noire de objetos parciais, que são deslocados metaforicamente para as telas. A paleta de Senise — negra, branca, traços de vermelhos e azuis — não só torna as suas imagens ainda mais dramáticas e inquietantes, como nos faz sentir presentes na cena expressionista. Há qualquer coisa de grandiloquente e wellesiano nessas imagens sem significação. Ele parece ter sacudido uma arte da quietude, como se ela fosse indiferente demais. Os objetos, para os quais Senise dirige sua percepção, estão carregados de uma narrativa, são expressões preenchidas, rastros e restos de algo que se tornou íntimo, que foi vivido. Desta intimidade com os objetos, Senise tem construído, com suas formas volumosas, uma heroica sensação — uma monstruosa sensação física dos objetos. Senise tornou signos óbvios e corriqueiros um drama da sensação fragmentada, mutilada. Os objetos que pinta, seja um modelo, uma paisagem, uma evocação psíquica, possuem estas rupturas, estas mutilações. Ao mesmo tempo, esta arte que joga com o não-sentido das coisas reflui num ambiente, cujo espaço cenográfico é acentuado para acolhê-lo.

É a visão que se ocupa da cena, transformando o mundano, o corriqueiro e o que é negligenciável em algo “possuído” pela inquietação das coisas. A arte de Senise é, nos anos 80, um acontecimento que parece contornar uma situação-limite da pintura: como continuar produzindo algo de inesperado quando já não existe mais espera? Algo similar ao que o teatro de Beckett nos oferece como o começo de sua ação.

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