Daniel Senise

O Chão Andaluz

Arthur Omar

Texto publicado no catálogo da exposição do artista na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, em  2001.

Esta série de pinturas de Daniel Senise parte do chão. Esfregar o olho nesse chão. Agachar a atenção scbre ele. E andar. Um chão para a passagem do olhar.

O chão é o maior lugar do mundo. Tudo que existe no mundo cabe no chão. Mesmo as montanhas tem o seu chão, ainda que invisível. O chão se confunde com a superfície da Terra. Quando imaginamos a superfície da Terra como um chão sem fim, é porque sentimos que o homem está em casa em qualquer lugar. O chão é quando a ideia da casa se projeta sobre tudo. A superfície.

A película da Terra.

A produção da obra se dá numa sequência de fases, desde o reconhecimento do chão horizontal, plano de piso, até o quadro assumindo a sua verticalidade definitiva. A noção de Imagem encontra uma redefinição sem precedentes. Vejamos como funciona o dispositivo.

A tela em branco é revestida por uma espécie de cola com pigmentos e aplicada diretamente sobre o chão, como uma lente de contato, ou um sudário arquitetônico.

Exerce-se pressão sobre essa tela, para que ela adquira intimidade absoluta com o chão que será o seu destino. Quando retirada, a tela traz consigo a poeira invisível do chão, as marcas, sulcos, restos, imperfeições, desgastes, derrapagens, frutos do uso, do percurso, do tráfego humano, e todos os seus acasos, que largaram ali microíndices materiais de um tempo que já é pura memória.

Essa tela é montada sobre um chassis de madeira, que a torna plana e impecável. Forma-se um grande quadro de imprevisibilidades. Pintura abstrata, sem intervenção de mão humana. Pintura “aplicada”, no sentido literal do termo.

O processo continua. Outros fragmentos dessa tela, com flagrantes do mesmo chão, são recortados, a partir de linhas, que são linhas de fuga, sugeridas pelas das paredes do próprio ambiente original, que pode ser a sala de um museu, ou o próprio quarto do artista. Esses fragmentos são colados sobre a tela de fundo, de tal maneira que se fundem com ela. Temos uma cena. O conjunto forma uma imagem ou um desenho, quase uma fotografia decalcada, desse ambiente.

O que antes era abstração informal, indeterminada, composta de manchas casuais, caóticas e insignificantes, agora se torna a base para uma inesperada recuperação da figura. Basta apurar a vista. Vemos, agora, a representação completa do espaço do qual aquele chão era parte. As paredes, o teto e todos os detalhes são feitos a partir dos acidentes do próprio chão. Não é evidentemente uma fotografia típica. Mas talvez uma fotografia monotípica, porque é pura pintura. O chão aqui se transforma numa Ideia, como o Amor é uma ideia num soneto de Michelângelo. Senise neoplatonista.

Eu vi esses quadros postos ainda sobre cavaletes no ateliê de Daniel Senise, horizontais, como o chão já tivesse subido a um metro de altura, já pairando acima do nível do piso, mas ainda se preparando para executar a rotação que o colocaria em posição ereta. Não sei por que me fixo nesse instante em que o que era plano e horizontal gira e muda de orientação. Como um ato inaugural, um gesto épico. Os quadros de Daniel são grandes, precisam de pelo menos duas pessoas para serem erguidos, pequena multidão.

Monumentalidade feita com poeira. Giro épico, que deveria ser guardado na memória perceptiva dessas obras, pois ali se dá a transmutação verdadeira em busca da fase final. Emanação.

Devemos percorrer, com os olhos, o plano vertical chamado quadro, que nos oferece Daniel Senise. Arte pedestre, à maneira de uma Arte rupestre. Nesse percurso não é necessário movimentar muito o olho. Ao contrário, o gozo vem de fixá-lo suavemente num ponto central, a poeira captada pela cola vibra, o olhar começa a penetrar numa profundidade improvável. Percorrer o plano vertical, confundido com a parede, consciente da sua horizontalidade originária de chão.

Um e outro, o chão e o quadro alevantado do chão, formam a cruz ortogonal, e estabelecem, num lugar inédito da mente, os eixos puros da perspectiva. Estaríamos diante de um mural sem restauro do pré-renascimento? Essa cor, essas linhas, essas cenas. A história da pintura acelera a imaginação. Diante daquele chão vertical, nada nos resta senão continuar a perceber.

A perspectiva sempre foi, basicamente, o chão. A perspectiva nasceu de uma reflexão sobre o chão pré-renascentista, a ladrilhagem das igrejas e pátios internos. Era o chão quem pronunciava melhor a palavra lugar. Diante do chão, mesmo as paredes não passavam de cenografia. O chão definia a forma informal do espaço. O chão como tabuleiro, como quadriculado abstrato, como display das coordenadas. O chão como o limite e o lugar mesmo onde ia ser montada a cena.

O chão era o próprio lugar. Um chão teórico, limpo, asséptico, imaterial, gerado em placenta geométrica.

Em Senise, temos um outro chão, onde se inscreve uma outra radicalidade da experiência corpórea. Percepção visual, literalmente pós-retiniana, não sem a necessária dose de ironia.

Manchas de poeira são objetos não-significativos. Materialmente falando, são como que o significante do não significante. A arte contemporânea persegue o automatismo dessa não significância à exaustão. Mas Daniel Senise dá uma outra volta no parafuso.

Os rastros e manchas no próprio chão surgem por contato. Pés, objetos arrastados, deposições variadas, que se dão ao longo do tempo, uma história para cada chão, a própria ideia de passagem, de transitoriedade, e ao mesmo tempo de permanência.

A mancha, no chão, surge por contato, cópia de contato, como em fotografia, sem ampliação, contact print com a coisa. O chão, uma folha de contato “fotográfico”. E a tela de Daniel Senise recobre o chão como contact print dessa contact print, abrindo abismos sucessivos e imprevistos da ideia de printagem, ou a pintura como “pintagem”. Como em toda prova de contato, é necessário a luz. Só que aqui não é uma luz de ver, mas uma luz de andar. O Chão Andaluz.

No filme o Cão Andaluz, de Luis Buñuel, a navalha corta transversalmente o globo ocular, em gesto radical. Ela penetra no olho, e o rasga, expondo as entranhas. No Chão Andaluz de Daniel Senise, temos também uma navalha, invisível, só que agora cortando num outro sentido, paralelo à superfície, tocando de leve o objeto. Ela retira a película das coisas, descolando do chão apenas a superfície, e se dá a isso o nome de pintura. A película como um negativo do chão, aquilo que pairava sobre ele na infinitesimalidade de uma distância próxima de zero.

A metáfora se amplia, e o circuito de operações se fecha. Não se trata apenas da ideia de percurso, de caminho. Mas de tudo que a força de gravidade causou à humanidade em um milhão de anos. Nunca uma pintura foi tão imediata, tão colada ao real, e ao instante, e, ao mesmo tempo, trabalhou com temporalidades tão longas. Memória e Imemória.

 

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