Daniel Senise

Conversa com Luiz Camillo Osório

Luiz Camillo Osório

Texto publicado em Daniel Senise: XXIX Bienal de São Paulo, São Paulo, 2010

— Daniel, comecemos pelo início, os anos 80. Tenho muitas dúvidas sobre o significado da Geração 80, sobre o modo como se definiu o retorno à pintura, o apelo ao prazer do gesto pictórico, das cores, da materialidade. A meu ver, houve um discurso empobrecedor das expectativas em relação à pintura. Como se ela fosse apenas veículo de prazer sensorial e o que isso implicou de acomodação institucional e cinismo. Parece-me, mantidos esses termos, um desserviço à pintura. Olhando a sua trajetória, o que vemos é justamente o quanto sua pintura foi ficando reflexiva e crítica, mantendo com a imagem um estranhamento estratégico e se apropriando de elementos cada vez mais conceituais e menos sensoriais. Como você enxerga hoje o legado da Geração 80?

A Geração 80 no Brasil foi um reflexo de movimentos de volta à pintura que aconteciam na Europa e nos Estados Unidos nesse período. A diferença é que eles, como no caso da transvanguarda italiana ou no neoexpressionismo alemão, eram fundamentados em reapropriações e releituras de tradições específicas. Aqui, essa nova pintura era vinculada ao ambiente de liberdade resultante da abertura política. O próprio nome se referia a uma época, e não a um projeto ou uma abordagem. Mas, por ser uma ideia que compunha bem com o momento, ela foi abraçada e amplificada pela mídia jornalística. E a coisa ficou por aí.

É claro que houve uma conivência por parte dos artistas jovens, mais por ingenuidade do que qualquer outra razão. O que se fazia nesse primeiro momento era uma pintura que apesar de ter um certo vigor era muito diletante. Percebi que aquilo iria se esgotar rapidamente, como realmente aconteceu, mas poderia me dar algum tempo para pensar no que eu queria com a pintura.

— Pela intensidade matérica e pelos tons mais sombrios, sua pintura foi associada, de início, ao neoexpressionismo alemão, especialmente com Kieffer, guardadas as diferenças, é claro. Olhando mais de perto, destacando sua relação um tanto irônica e até mesmo melancólica com a imagem, ela remeteria, mantendo a mesma geografia, a Martin Kippenberger ou mesmo a Richter. Você concorda? Fale um pouco da sua relação com a história da arte e com a pintura contemporânea?

Quando comecei a mostrar o meu trabalho, ele tinha uma raiz expressionista. O pintor que eu mais olhava nesse período era Markus Lüpertz. Por influência dele, procurava representar os objetos e imagens do meu cotidiano em uma pintura de embate e econômica nas cores. Embora gostasse do processo de feitura dessas telas, senti que não iria muito à frente se não problematizasse essa pintura. Tinha vontade de buscar algo adiante, mas não tinha noção do quê. Por conta disso, em 87, abandonei a marca da pincelada e comecei a usar materiais mais variados. Nessa época fiz as primeiras impressões do chão do meu ateliê. Isso criou uma certa aparência de Kieffer nas minhas telas. Mas o trabalho dele depende da escala e se desenvolve em torno de referências históricas. Não era o que eu procurava. Pois aí já havia decidido que a pintura seria o meu tema e que as imagens deveriam vir do seu universo. Era bem complicado, porque era uma faixa muito estreita de opções para quem estava começando, e muitas vezes me sentia sem saída. Nessa época, meu pintor favorito era Sigmar Polke. Foi quem mais vi e revi nesses anos de escavação. Gosto de Kippenberger. Sobretudo da facilidade com que transita entre a pintura e os trabalhos de ocupação espacial. Mas ele se utiliza de uma ironia cômica que também não é a minha praia. Já Polke, apesar de irônico, é muito rico nos recursos que usa em sua pintura, fazendo com que não se possa lidar com suas imagens desconhecendo o material que está utilizando. Isso me interessava bastante. 

— Falemos um pouco da arte brasileira. A entrada em cena da Geração 80 foi marcada por uma aparente ruptura com a tradição crítica da arte brasileira, que passaria pelo neoconcretismo, pela nova figuração e pela geração conceitual dos anos 70. Quando se falava em pintura ali, não se trazia à cena pintores do porte de um lberê, um Sued. E mesmo um Jorginho Guinle, que estava por perto, foi pouco influente na pintura carioca, marcando mais os artistas de São Paulo, especialmente o Fabio Miguez. Você concorda com essa leitura de que teria havido um apagamento, pelo menos discursivo, da história da arte brasileira por parte da Geração 80? Ou será que isso não aconteceu?

De fato, a Geração 80, sobretudo no Rio de Janeiro, era bem autorreferente e desconectada com o que estava acontecendo. Eu acredito que as circunstâncias favoreciam isso. Era todo mundo muito jovem. Essa tradição crítica da arte brasileira a que você se refere se desenvolvia em territórios pouco acessíveis. Naquele momento, olhava-se mais para fora do Brasil do que para a situação aqui. A possibilidade de ver uma pintura que mal havia secado em uma Flash Art era maior do que a de ver arte brasileira num dos nossos museus. Em São Paulo era um pouco diferente, mas acho que a escola de arte de lá também não era muito estimulante. Nos anos 80 se inicia também, para o bem e para o mal, um processo de profissionalização das artes visuais em todas as suas instâncias em um nível que não existia antes. A crítica de arte passa a ser uma opção acadêmica nos currículos universitários. O intercâmbio entre instituições e curadores de fora fica muito mais intenso. De qualquer maneira, da Geração 80 só permaneceu quem a seu modo formulou o trabalho em algum nível de contextualização. 

— Talvez seja mais o caso de se dizer que só permaneceu quem conseguiu desdobrar o prazer da pintura em uma poética, numa inquietação conceitual que foi se depurando formalmente, ou seja, conseguindo fazer com que um pensamento da arte se deslocasse para um pensamento do mundo. Arte tem que falar de si e falar do mundo, para ser ao mesmo tempo prazer e pensamento. Esse é um aspecto interessante para avaliarmos alguns de seus trabalhos mais recentes em que você se apropria de uma materialidade autorreferida — livros de história da arte, páginas de catálogos, convites, folders etc — e a transforma em pintura e/ou instalações. Os muros do CCSP e da Bienal ou esta última fornada de pinturas com as páginas das edições Skira. Em que medida lhe interessa que o público saiba da procedência dos materiais, de onde saíram os trabalhos e de que modo eles podem existir por conta própria?

Entendo essa contextualização como uma coisa relacionada à linguagem. Não é possível desenvolver uma pintura desconhecendo sua história. Nos anos 80 é assim também. Acho que essa leitura da opção pelo prazer que se fez aí corresponde a uma reafirmação simplificada da vocação da arte que é tratar do mistério ou, como você diz, de um pensamento do mundo, da vida. Estávamos em um novo ambiente, resultado de conquistas de movimentos como o neoconcretismo, que fizeram essa passagem do moderno para o contemporâneo, onde as coisas são mais fluidas, misturadas e menos dogmáticas. Eu vejo nesse momento o desejo do pintor de voltar a pintar a paisagem. Sendo que agora essa pintura contém as conquistas do modernismo, sobretudo a ideia de o suporte deixar de ser um elemento neutro para se tornar fisicamente ativo na composição da obra. Os trabalhos da Skira ou a série feita com tijolos fabricados com papel de arte reciclado têm a ver com a isso. A relação do material usado com a obra é o que articula essa pintura que quero fazer e a informação da origem do material é um componente da obra. O trabalho feito com aquarelas é um desdobramento disso também, pois embora não seja uma coleção de resíduos, representa o espaço onde foi realizado em sua dimensão real. 

— Fiz agora no MAM, junto à exposição de Cristina Canale — que considero uma das grandes pintoras da sua geração —, uma outra com sete artistas, incluindo você, à qual dei o título, meio de brincadeira, meio a sério, de Se a pintura morreu o MAM é um céu, tentando mostrar algumas possibilidades da pintura hoje, das mais tradicionais, como óleo sobre tela do Eduardo Berliner, às mais heterodoxas, como as de Gustavo Speridião e os retratos recortados de Jarbas Lopes. Sempre me pergunto sobre esse campo ampliado da pintura, sobre seus desdobramentos instalativos e os vários procedimentos usados pelos artistas para fazerem pintura. Sem querer nos fixar na discussão dos meios expressivos, se é ou não pintura, me questiono sobre o que faz alguém pintar hoje, o que pode ainda seduzir na pintura para quem faz e para quem vê. Acho que tem um tempo do olhar que é próprio à pintura e que se opõe à aceleração contemporânea. Será que isso existe? Você se considera um pintor?

Concordo que o problema não seja definir os limites da pintura, mas como ela se manifesta hoje. Acho que um bom exemplo é um trabalho de Rodrigo Mateus que comprei há pouco tempo. É um quadro de avisos com um forro azul escuro, iluminado com uma luz fria e com um monte de alfinetes espetados meio aleatoriamente. Gosto dele porque trata da ideia de representação com uma grande força poética. É uma resposta talvez não intencional, mas não importa, à discussão dos limites da linguagem pictórica. Acho que existe um ambiente na pintura que é irredutível e que passa pela ideia de representação, até mesmo de algo não figurativo, como um campo de cor por exemplo. Dependendo dos materiais e da sua disposição, estamos diante de uma pintura. Hoje as possibilidades de expressão são mais variadas. Temos desde pintores mais pictóricos, no sentido tradicional do uso de materiais e dos procedimentos, até outros que, como eu, não têm um tubo de tinta no ateliê. A intenção não é mais a de defender a autonomia da pintura. Isso não é uma questão. As linguagens têm um princípio natural com a maneira de nos relacionarmos com o mundo. Desenhamos e esculpimos antes mesmo de aprender a escrever. Hoje as linguagens são mais numerosas e complexas, mas essa qualidade original permanece e é ela que preserva a arte de sucumbir à aceleração contemporânea.

 — Vou retornar a uma primeira questão que me parece importante na compreensão de sua trajetória: qual a importância da Escola de Artes Visuais do Parque Lage? Você talvez seja da primeira geração que nasceu ali depois que Gerchman, em 75, renomeou-a Instituto de Belas-Artes e Breitman, no começo dos anos 80, aproximou a escola do mercado. Como, olhando retrospectivamente, você vê sua formação? Qual o papel da escola na definição do artista?

Não conheci a Escola de Artes Visuais na época do Gerchman, mas me parece muito coerente com o momento e como imagino que deveria ser uma escola de arte. A ideia de uma escola como um lugar onde se formam artistas é um equívoco. Acho que seu papel deveria ser o de fornecer conhecimento técnico e informação. O Parque Lage sempre me pareceu mais um centro de encontro e discussão do que uma escola propriamente dita. Minha experiência lá foi sobretudo de convivência. Entrei na época em que Rubem Breitman era o diretor. Frequentei como aluno por muito pouco tempo, mas foi onde encontrei amigos com quem logo em seguida montei meu primeiro ateliê. Comecei a dar aula também no final dos anos 80 e era completamente despreparado para isso. Mas foi nesse momento que talvez aprendi mais. 

— Você é um artista que usa muito a lata de lixo do ateliê ou é daqueles que gosta de guardar as tentativas não concluídas para eventuais futuros desdobramentos? O que fica mais cheio no seu ateliê: o lixo ou o arquivo?

É verdade que acumulo coisas no ateliê e levo um tempo para saber o que fazer com elas. É um período de convivência para estabelecer algum tipo de relevância no uso desses materiais ou mesmo jogá-los fora. A relação do que estou representando com o material usado está numa área de sombra da qual não tenho domínio pleno. Tem que haver uma falta de controle, um certo desconhecimento, para a coisa acontecer. Desde o começo, a ideia do sudário me interessou como uma metáfora para a pintura. Agora estou usando livros de arte, sobras de catálogos e convites de exposições. Nesses materiais, ao contrário das impressões, acontece um apagamento da informação que estava lá.

 

 

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